Scorsese reapresenta ao cinema a palavra sonho com homenagem sem precedentes.
Muito antes de se tornar cineasta, Martin Scorsese sempre foi um cinéfilo inveterado. Pode parecer o caminho natural das coisas - um apaixonado por cinema seguir a carreira de diretor - mas a verdade é que existe muita gente por trás das câmeras que não conhece de fato a história do cinema. Scorsese sempre foi um devoto da Sétima Arte, e possui cultura cinéfila suficiente para esbanjar em seus diversos filmes . Não a toa é o cineasta das referências, que tem ciência do percurso da arte ao longo dos anos, além de contribuir fazendo parte dela como um dos expoentes mais talentosos da cinematografia norte-americana de todos os tempos.
Considerado por muitos o melhor cineasta vivo, sem dúvida não havia opção mais sábia para a direção d'A Invenção de Hugo Cabret do que o talentosíssimo nova-iorquino nascido no Queens. Mais do que traquejo no manuseio das câmeras, o filme baseado no livro homônimo de Brian Selznick precisava de alguém que verdadeiramente respirasse cinema para coordená-lo. Sem conhecer a obra original , confesso que assim que Scorsese comprou os direitos de adaptação do livro para o cinema, pairou sobre mim e outros colegas uma grande nuvem de desconfiança. Afinal , por mais aficcionado que um sujeito seja por sua arte, há naturalmente limites para trafegar sobre gêneros - e se existe alguém com gênero bastante definido em sua carreira, esse alguém é Martin Scorsese.
Mean Streets, Taxi Driver, Touro Indomável, Bons Companheiros, Gangues de Nova York e Os Infiltrados são exemplos fortes da nada leve lista de filmes que compuseram a respeitosa carreira de Scorsese. A brutalidade se tornou inerente a suas composições nas telas, muito porque Scorsese a vivenciou durante seu crescimento na violenta região conhecida antigamente como Little Italy. Como um diretor tão brutal e ''censura R'' poderia aceitar dirigir um longa teoricamente infantil? E, ainda por cima, utilizando uma tecnologia muito controversa nos dias de hoje - o 3D. Afinal, Scorsese representa uma entidade clássica , e se render a uma experiência que gerou tantos subprodutos fúteis e caça-níqueis nos últimos anos era algo , no mínimo, questionável.
Mas a verdade é que não se pode julgar nada antes da hora. A Invenção de Hugo Cabret revela-se mais um marco emocionante e desde já inesquecível da estupenda cinematografia de Martin Scorsese. Uma película simples, porém jamais rasa, que trata das origens da história do cinema, ao contar a paixão de um menino pela mágica sala escura que revela histórias - e se a narrativa de Hugo Cabret , a princípio, não tinha nada que combinasse com Scorsese, já podemos ver por aqui que semelhanças existem, e ao longo da projeção, amontoam-se.
Roteirizado pelo hábil John Logan - mente responsável por Rango, outra filme que soube lidar de maneira sutil e eficaz com referências ao cinema - A Invenção de Hugo Cabret narra a história de Hugo (Asa Butterfield), um menino que vive entre as paredes da estação de trem de Paris , tratando para que os relógios daquele lugar não parem. Ele tem o propósito de consertar um misterioso autômato encontrado por seu falecido pai, e , para isso, faz pequenos roubos na loja de Papa Georges (Ben Kingsley). Determinado a cumprir seu objetivo, ele é ajudado pela afilhada de Georges, Isabelle (Chole Moretz) que possui ,curiosamente, uma chave que se encaixa perfeitamente na fechadura do autômato.
O script do longa certamente não é seu ponto alto, repleto de situações já conhecidas e com uma narrativa esquematizada, mas não era possível sair desse sistema : Hugo é , antes de mais nada, um filme de homenagem aos antigos clássicos, tendo assim seu foco não em reinventar a roda, mas em analisá-la da maneira mais saudosista e interesante, conseguindo trazer para as novas gerações a história da origem da Sétima Arte de maneira tocante, emocional e sutil. Diferente de outro longa desta temporada que remonta a clássicos, como O Artista, Hugo não utiliza das técnicas da época para reforçar sua nostalgia e escancarar suas referências. Usa uma história paralela, para contar sobre os acontecimentos da vida de Georges Mélies, por exemplo. Não apela, por tanto, nem aponta setas luminosas para sua "ousadia". Apenas trata com carinho os entraves reais da vida dos pioneiros do cinema, utilizando de outra narrativa tocante para tanto.
Aliás, esse paralelo traçado entre o cinema antigo e a narrativa contada pelo próprio filme é bastante chamativo. Há personagens coadjuvantes aos montes que servem de link direto ou indireto à personas ou situações do cinema do final do século XIX ou das décadas de 10, 20 e 30. O personagem de Sacha Baron Cohen, por si só, é a encarnação do humor físico desempenhado na época de Charles Chaplin; todo o esquema de atuações do elenco de apoio suporta as referências aos primórdios do Cinema, onde o humor e os trejeitos um pouco exagerados eram considerados base.
Mas talvez o que mais mexa com o espectador seja a noção da paixão que Scorsese possui por sua profissão. Quando citei que era de se estranhar alguém como o diretor realizar um filme "destinado ao público infantil", era porque simplesmente não havia assistido ao longa. A Invenção de Hugo Cabret tem muito em comum com a vida de Scorsese , ligações que vão desde de sua infância até sua vida recente. Hugo, afinal, é um menino deslumbrado por cinema, que ficava encantado quando seu pai o levava a uma sala de exibição. Ora, a conexão que isto tem , não só com amantes de cinema ao redor do mundo, mas principalmente com Martin Scorsese aprimorando sua cinefilia ainda jovem, é claríssima, e gera um força emotiva incrível, que se origina desse belo subtexto.
Ainda temos também, a história de Georges Méliès. Aqueles que viveram com tamanha paixão e dedicação ao cinema como Méliès, são pertencentes a um grupo seleto de artistas . O homem foi testemunha e agente importantíssimo nos primórdios da Sétima Arte, realizador de centenas de filmes, passando por um fase negra quando vendeu as películas de suas produções para empresas que as derreteram para a criação de calçados. Não cabe a mim dizer se Scorsese é tão inclinado como Méliès foi para o cinema; comparações do tipo sempre serão nascentes de polêmicas desnecessárias. O que fica claro para nós, entretanto, quando vemos Méliès trabalhando em seu estúdio construído com paredes de vidro, é a imagem de um artista inebriado com sua obra - e é inevitável não ter um insight neste momento que nos remeta a Scorsese, que deixa um manifesto de amor à hoje subestimada Sétima Arte, tratada como comércio por tantos pseudo-diretores.
No geral, é isso que o filme é : uma grande mensagem de afeto ao cinema. Tal mensagem é representada pelo amor de personagem a personagem; pelo carinho de Hugo com seu autômato; pela persistência de cada um por seu objetivo - assim como nunca Hugo desiste de reaver seu caderno, os verdadeiros cineastas nunca desistiram do verdadeiro valor do cinema. Por vezes, nos enxergamos em mero exercício sensorial durante a projeção : analisando as referências metalinguísticas inspiradas - como nas cenas onde Hugo está prestes a ser atropelado por um trem, remetendo à primeira exibição dos irmãos Lumière - ou pelos gracejos simples de um ou outro personagem .
Nos perdemos também pelas belas imagens que o 3D primoroso do filme exibe: Scorsese realiza aqui seu primeiro trabalho com o 3D estereoscópico, e logo de cara faz uma das melhores apresentações tridimensionais que o cinema já viu . Sabe como passar as noções de profundidade, revelando que parece mesmo ter se dedicado a estudar a técnica, e consegue aplicar a tridimensionalidade até para realçar o drama de seus personagens - a neve contínua, a fumaça aparecendo em momentos oportunos - demonstrando que Hugo é , mais do que Avatar ou qualquer outro filme, um projeto realmente pensado para o 3D. Há passagens na trama que têm seu potencial dramático atingido apenas se assistidas com a tecnologia. Momentos singelos, que não devem ter sua surpresa estragada sendo contados aqui . Tudo isso, aliado a um design de produção soberbo, produz fotogramas de beleza surpreendente. Note também a inteligência da direção de arte ao aliar todo o cenário/instrumentos antigos com uma paleta de cores vivas que transmitem o "sonho" dentro da cabeça de uma criança.
Outro aspecto que nos deixa completamente extasiados na projeção são suas atuações. Se Asa Butterfield consegue prender toda a atenção dos espectadores a si, revelando ter uma presença de cena admirável, principalmente para um ator de sua idade, as coisas ainda melhoram com sua química nada forçada com a talentosa Chloe Moretz. Os dois levam suas cenas adiante com fluidez invejável, o que torna a experiência do filme ainda mais orgânica. Aliás, outro que se revela completamente entregue a seu papel - o mais delicado, já que trata de uma figura histórica - é Ben Kingsley, que exibe seu carisma costumeiro, encarnando o turbilhão de emoções que seu personagem se submete, mas tendo êxito, principalmente, ao trazer a vida a paixão que este tinha por sua arte.
A Invenção de Hugo Cabret é uma homenagem sem precedentes, filme que se revela extremamente vistoso e sentimental à primeira vista, porém se torna mais terno e importante depois de certo tempo. É uma daquelas apresentações que nos lembram do que a Sétima Arte realmente é feita - de idéias e de trabalho duro. Inspiração e transpiração nos trazem a um limiar de sucesso no cinema, que é o patamar o qual qualquer realizador deveria querer chegar : o de sonho . Não estou dizendo aqui que Scorsese é arrogante o bastante para ter a audácia de ensinar a alguém como transmitir a magia do cinema; mas fazê-la ficar eternizada é um bom e bem-vindo lembrete.
5 Estrelas ***** - Muito Bom.
Fornecendo críticas há 2 anos, o OSN é uma colaboração de Gabriel Papaléo e Joaquim Pedro, onde o Cinema é o assunto principal a ser analisado, debatido e admirado.
Old School Nerds
domingo, 12 de fevereiro de 2012
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Histórias Cruzadas
Filme hipócrita sobre o racismo encontra em seus personagens interlocutores natos de uma mensagem ás avessas.
Para angariar prêmios, principalmente aqueles estadunidenses, um filme americano muita das vezes precisa ter mais do que "apenas" qualidades técnicas e narrativas. É preciso ter uma mensagem, uma lição de moral, e ajuda muito se esta for sentimentalóide, com um cunho de crítica social e política. Funciona para ganhar admiradores ao redor do mundo, e também para faturar alguns mui bem vindos carecas dourados . Sempre foi assim em Hollywood, e e a tendência é continuar - não necessariamente o melhor filme ganha, mas aquele que cativa mais os jurados. Afinal de contas, o Oscar nada mais é que uma grande eleição. Deste modo, criar uma produção com apelo emocional, anexado de um pseudo-ativismo político por direitos humanitários é um passo enorme para atrair a atenção para si. Se a vitória não vem, pelo menos as indicações chegam aos montes.
Neste aspecto, Histórias Cruzadas é uma falha de proporções épicas , pois compromete sua desde já clichê intenção inicial de criar um manifesto apelativo pela luta contra o racismo, através de uma narrativa que vergonhosamente pinta os negros como seres acovardados e sem força própria na árdua tarefa de ter seus direitos reconhecidos. No entanto, se há alguém que pode bater de frente com o racismo e ainda de quebra ser a "mocinha" da história, essa pessoa é uma menina loira , de olhos azuis, interpretada pela bela Emma Stone.
Pode até ser involuntário, mas a mensagem que o filme de Tate Taylor transmite é completamente oposta a qualquer princípio de libertação dos negros - as empregadas negras não são agentes ativos em sua jornada de encontro à civilidade reconhecida ; são criaturas amendrontadas que acham sua "salvadora" em Eugenia "Skeeter" Phelan (Stone), uma moça que retorna ao Mississipi depois de estudar em outro estado, e não está acostumada mais aos hábitos discriminatórios de sua região natal. Ou seja, a personagem interpretada por Stone nada mais é que uma versão estrangeira da nossa já conhecida Sinhá Moça, e se no Brasil a protagonista é branca por motivos de "venda" da personagem para o público - leia-se : discriminação - não parece ser muito diferente no longa norte-americano.
Na trama, somos introduzidos a uma destas empregadas negras chamadas de maids ou helpers - por isso o título original The Help . Aibileen Clark (Viola Davis) é uma empregada de meia idade com uma história de vida sofrida que passou toda a vida criando os filhos brancos de seus patrões. A atenção dedicada ás crianças é tamanha que elas enxergam em Aibileen uma mãe, já que a negra é quem educa e dispensa a maior parte do tempo com os pequenos . Ela e Minny (Octavia Spencer) são duas amigas de profissão que sofrem com o racismo extremo de socialites como Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard) . Depois de eventos mais explícitos e cruéis de discriminação racial, as duas negras decidem ajudar na reportagem de Skeeter sobre a vivência das maids de Mississipi : relatam o que presenciaram, o que fizeram, e o que sofreram trabalhando para os brancos.
O principal problema do roteiro adaptado de Tate Taylor -não li o livro "The Help" em que ele se baseia - é sua gritante hipocrisia quanto ao seu principal tema : a questão racial. Obviamente ele tem em sua proposta mostrar o combate à discriminação - porém se o seu objetivo é esse, seu discurso cinematográfico , na prática , soa diferente : quem precisa ser a voz de expressão e de salvação para as afro-americanas é uma escritora branca. Não importa se a intenção é essa , mas a mensagem que fica é "Pessoas brancas resolvem o racismo", denotando uma suposta incapacidade por parte dos negros em resolverem seus próprios problemas. Julgá-los como incapazes é, ironicamente, de um racismo tão grande quanto aquele que o filme "julga" combater.
Além disso, a atitude um tanto covarde das negras do filme não parece se encaixar com nenhum dos princípios de resistência à segregação : Nem o confronto direto defendido por Malcolm X, nem a atitude de convivência pacífica, mas mantendo seu ativismo, de Martin Luther King Jr. A postura das negras parece acomodada, sem ímpeto, necessitando da "boa vontade" de uma jovem de olhos claros para tirá-las de seu lugar. Em uma análise detalhada, Histórias Cruzadas tem muito de um discurso misógino - afinal, tanto Martin Luther King Jr. e J.F Kennedy, que têm suas mortes apontadas no filme, foram homens que se mantiveram contra o sistema segregatório vigente ; eles sim, foram ativistas, lutaram, e viraram mártires.
Não só isso retrata o contexto misógino presente no longa ; a boa moça Skeeter, que aparece no início como um despontar de vigor da força feminina, disposta a trabalhar, fumar , mas sem se preocupar pela ausência de um namorado - status exigido naquela época, para um provável futuro casamento - demonstra sua hipocrisia quando chamada para sair com um homem : muda de humor, fica animada, arruma uma bela roupa, alisa o cabelo e corre para o carro. Onde estava a forte moça independente? São várias rachaduras que se apresentam aos poucos nos discursos de The Help, que demonstram toda a sua falsidade ; no fundo, é uma história feita para a elite caucasiana, que subestima as minorias e acredita na "boa ação" dos ricos e brancos para com os pobres negros.
E tudo piora com a presença de personagens unidimensionais que podem ser rotulados com facilidade extrema . Basta um olhar direcionado a Emma Stone para ver nela a protagonista boazinha -note, uma protagonista branca num filme sobre negros - , e não demora também para enxergarmos na personagem de Dallas Howard uma "vilã" típica. As personas aqui são falsas como o cabelo cheio de laquê das dondocas retratadas.
Entretanto, essa proposta esteriotipadora funciona em determinadas situações, e embora cause momentos constrangedores - a negra viciada em frango frito; Aibileen falando "You is smart", é o ápice do senso comum sobre os afroamericanos - gera personagens interessantes, como a deslocada Celia Foote (Jessica Chastain) socialite que não é aceita por suas companheiras de classe. Celia é o esteriótipo da patricinha voluptuosa, cheia de chiliques, mas que você vê no primeiro instante que tem "bom coração". A performance de Jessica Chastain em cima da persona evoca toda a verdade que é inerente ao personagem esteriotipado, e leva todos os trejeitos e caras e bocas a um patamar elevado, dando literalmente vida ao esteriótipo. Dessa forma, é interessante que numa determinada cena-chave, Celia esteja embriagada - é possível hiperbolizar ainda mais a personagem, notando o estudo atencioso da atriz para captar este exagero e transmiti-lo, mostrando um pouco de verossimilhança brotando do arquétipo.
E se Jessica Chastain auxilia na modelagem de sua personagem, Viola Davis também contribui vigorosamente para a construção de Aibileen. Apesar da mensagem do filme subestimar o poder de sua etnia, Aibileen nunca demonstra ser uma mulher frágil , apesar de transparecer seu sofrimento e suas emoções apenas com um olhar. Davis mostra cada sentimento da persona que encarna , mas sua face reluta em sorrir, ou chorar, tentando manter a expressão séria : o velho hábito de sentir dor ás escondidas, tendo que tocar a vida mesmo com o coração partido. Aliás, a cena em que Aibileen conta da morte de seu filho como uma mulher forte que suporta a dor, deve ser a sequência com grande responsabilidade por suas indicações em tantos prêmios. Octavia Spencer faz bem o seu trabalho, é uma boa coadjuvante e retrata com veracidade Minny Jackson, mas não justifica ser a franca favorita em tantas premiações.
Com um design de produção primoroso, que remonta à época com perfeição, e uma direção de arte caprichosa , Histórias Cruzadas peca muito também por não possuir um diretor experiente: um cidadão com traquejo atrás das câmeras talvez soubesse onde não pesar tanto a mão, para não soarem tão apelativas certas cenas. Taylor não interfere no filme, não tenta dar sua colaboração como autor, ou tentar transmitir algo com seus takes. Pouco também influenciaria no discurso incorreto que Histórias Cruzadas tem, e que quase o implode como produção.
2 Estrelas ** - Fraco
Para angariar prêmios, principalmente aqueles estadunidenses, um filme americano muita das vezes precisa ter mais do que "apenas" qualidades técnicas e narrativas. É preciso ter uma mensagem, uma lição de moral, e ajuda muito se esta for sentimentalóide, com um cunho de crítica social e política. Funciona para ganhar admiradores ao redor do mundo, e também para faturar alguns mui bem vindos carecas dourados . Sempre foi assim em Hollywood, e e a tendência é continuar - não necessariamente o melhor filme ganha, mas aquele que cativa mais os jurados. Afinal de contas, o Oscar nada mais é que uma grande eleição. Deste modo, criar uma produção com apelo emocional, anexado de um pseudo-ativismo político por direitos humanitários é um passo enorme para atrair a atenção para si. Se a vitória não vem, pelo menos as indicações chegam aos montes.
Neste aspecto, Histórias Cruzadas é uma falha de proporções épicas , pois compromete sua desde já clichê intenção inicial de criar um manifesto apelativo pela luta contra o racismo, através de uma narrativa que vergonhosamente pinta os negros como seres acovardados e sem força própria na árdua tarefa de ter seus direitos reconhecidos. No entanto, se há alguém que pode bater de frente com o racismo e ainda de quebra ser a "mocinha" da história, essa pessoa é uma menina loira , de olhos azuis, interpretada pela bela Emma Stone.
Pode até ser involuntário, mas a mensagem que o filme de Tate Taylor transmite é completamente oposta a qualquer princípio de libertação dos negros - as empregadas negras não são agentes ativos em sua jornada de encontro à civilidade reconhecida ; são criaturas amendrontadas que acham sua "salvadora" em Eugenia "Skeeter" Phelan (Stone), uma moça que retorna ao Mississipi depois de estudar em outro estado, e não está acostumada mais aos hábitos discriminatórios de sua região natal. Ou seja, a personagem interpretada por Stone nada mais é que uma versão estrangeira da nossa já conhecida Sinhá Moça, e se no Brasil a protagonista é branca por motivos de "venda" da personagem para o público - leia-se : discriminação - não parece ser muito diferente no longa norte-americano.
Na trama, somos introduzidos a uma destas empregadas negras chamadas de maids ou helpers - por isso o título original The Help . Aibileen Clark (Viola Davis) é uma empregada de meia idade com uma história de vida sofrida que passou toda a vida criando os filhos brancos de seus patrões. A atenção dedicada ás crianças é tamanha que elas enxergam em Aibileen uma mãe, já que a negra é quem educa e dispensa a maior parte do tempo com os pequenos . Ela e Minny (Octavia Spencer) são duas amigas de profissão que sofrem com o racismo extremo de socialites como Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard) . Depois de eventos mais explícitos e cruéis de discriminação racial, as duas negras decidem ajudar na reportagem de Skeeter sobre a vivência das maids de Mississipi : relatam o que presenciaram, o que fizeram, e o que sofreram trabalhando para os brancos.
O principal problema do roteiro adaptado de Tate Taylor -não li o livro "The Help" em que ele se baseia - é sua gritante hipocrisia quanto ao seu principal tema : a questão racial. Obviamente ele tem em sua proposta mostrar o combate à discriminação - porém se o seu objetivo é esse, seu discurso cinematográfico , na prática , soa diferente : quem precisa ser a voz de expressão e de salvação para as afro-americanas é uma escritora branca. Não importa se a intenção é essa , mas a mensagem que fica é "Pessoas brancas resolvem o racismo", denotando uma suposta incapacidade por parte dos negros em resolverem seus próprios problemas. Julgá-los como incapazes é, ironicamente, de um racismo tão grande quanto aquele que o filme "julga" combater.
Além disso, a atitude um tanto covarde das negras do filme não parece se encaixar com nenhum dos princípios de resistência à segregação : Nem o confronto direto defendido por Malcolm X, nem a atitude de convivência pacífica, mas mantendo seu ativismo, de Martin Luther King Jr. A postura das negras parece acomodada, sem ímpeto, necessitando da "boa vontade" de uma jovem de olhos claros para tirá-las de seu lugar. Em uma análise detalhada, Histórias Cruzadas tem muito de um discurso misógino - afinal, tanto Martin Luther King Jr. e J.F Kennedy, que têm suas mortes apontadas no filme, foram homens que se mantiveram contra o sistema segregatório vigente ; eles sim, foram ativistas, lutaram, e viraram mártires.
Não só isso retrata o contexto misógino presente no longa ; a boa moça Skeeter, que aparece no início como um despontar de vigor da força feminina, disposta a trabalhar, fumar , mas sem se preocupar pela ausência de um namorado - status exigido naquela época, para um provável futuro casamento - demonstra sua hipocrisia quando chamada para sair com um homem : muda de humor, fica animada, arruma uma bela roupa, alisa o cabelo e corre para o carro. Onde estava a forte moça independente? São várias rachaduras que se apresentam aos poucos nos discursos de The Help, que demonstram toda a sua falsidade ; no fundo, é uma história feita para a elite caucasiana, que subestima as minorias e acredita na "boa ação" dos ricos e brancos para com os pobres negros.
E tudo piora com a presença de personagens unidimensionais que podem ser rotulados com facilidade extrema . Basta um olhar direcionado a Emma Stone para ver nela a protagonista boazinha -note, uma protagonista branca num filme sobre negros - , e não demora também para enxergarmos na personagem de Dallas Howard uma "vilã" típica. As personas aqui são falsas como o cabelo cheio de laquê das dondocas retratadas.
Entretanto, essa proposta esteriotipadora funciona em determinadas situações, e embora cause momentos constrangedores - a negra viciada em frango frito; Aibileen falando "You is smart", é o ápice do senso comum sobre os afroamericanos - gera personagens interessantes, como a deslocada Celia Foote (Jessica Chastain) socialite que não é aceita por suas companheiras de classe. Celia é o esteriótipo da patricinha voluptuosa, cheia de chiliques, mas que você vê no primeiro instante que tem "bom coração". A performance de Jessica Chastain em cima da persona evoca toda a verdade que é inerente ao personagem esteriotipado, e leva todos os trejeitos e caras e bocas a um patamar elevado, dando literalmente vida ao esteriótipo. Dessa forma, é interessante que numa determinada cena-chave, Celia esteja embriagada - é possível hiperbolizar ainda mais a personagem, notando o estudo atencioso da atriz para captar este exagero e transmiti-lo, mostrando um pouco de verossimilhança brotando do arquétipo.
E se Jessica Chastain auxilia na modelagem de sua personagem, Viola Davis também contribui vigorosamente para a construção de Aibileen. Apesar da mensagem do filme subestimar o poder de sua etnia, Aibileen nunca demonstra ser uma mulher frágil , apesar de transparecer seu sofrimento e suas emoções apenas com um olhar. Davis mostra cada sentimento da persona que encarna , mas sua face reluta em sorrir, ou chorar, tentando manter a expressão séria : o velho hábito de sentir dor ás escondidas, tendo que tocar a vida mesmo com o coração partido. Aliás, a cena em que Aibileen conta da morte de seu filho como uma mulher forte que suporta a dor, deve ser a sequência com grande responsabilidade por suas indicações em tantos prêmios. Octavia Spencer faz bem o seu trabalho, é uma boa coadjuvante e retrata com veracidade Minny Jackson, mas não justifica ser a franca favorita em tantas premiações.
Com um design de produção primoroso, que remonta à época com perfeição, e uma direção de arte caprichosa , Histórias Cruzadas peca muito também por não possuir um diretor experiente: um cidadão com traquejo atrás das câmeras talvez soubesse onde não pesar tanto a mão, para não soarem tão apelativas certas cenas. Taylor não interfere no filme, não tenta dar sua colaboração como autor, ou tentar transmitir algo com seus takes. Pouco também influenciaria no discurso incorreto que Histórias Cruzadas tem, e que quase o implode como produção.
2 Estrelas ** - Fraco
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