Old School Nerds

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domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Vencedor

David O. Russell e seu divertido retrato familiar sobre boxe.

Cinebiografias tem, por excelência, uma possibilidade muito grande de se tornarem consagradas. Para cada aberração como Fique Rico ou Morra tentando, temos dez A Rede Social. Os filmes de boxe seguem esse estilo. Rocky e O Campeão conseguem ser exemplos de narrativa e usam o esquema de superação de forma estimulante, geralmente culminando na luta final, que tende a ser inspiradora e emocionante. Quando os dois sub-gêneros se fundem, potencializa-se a emoção e geralmente saem obras memoráveis como Touro Indomável. Porém, o tempo fez com que existissem diversos tipos de "filmes de boxe". Se Hurricane e Ali são exemplos do filme de superação, foram criadas variações para o gênero não se tornar repetitivo. A partir daí, surgiram filmes que usavam o boxe apenas como pano de fundo para uma vida difícil(Touro, O Invencível), contos morais dramáticos(Menina de Ouro) e até mesmo filmes noir com pano de fundo do boxe(A Morte passou por Perto). Todos os gêneros bem sucedidos, vale dizer. Logo, é fácil constatar que é difícil se errar com um filme de boxe.

Obras sobre boxe rendem filmes competentes, sem dúvida, mas é raro ver algo que é digno de nota máxima, como o elogiadíssimo Touro, o ótimo Menina de Ouro e o emocionante Quando Éramos Reis. As variações no sub-gênero são essenciais no que diz respeito á qualidade das obras. Pegando como exemplo os filmes de roubo, temos o conflito da segurança contra ousadia, o que separa um filme competente de uma obra-prima. Se o recente Atração Perigosa não alcança um lugar na memória dos deuses do cinema é justamente por não ousar. Como comentei na crítica do competente filme de Ben Affleck, Fogo contra Fogo é a variação ousada do filme de roubo, o que o torna especial e inesquecível.

E no filme de boxe a coisa anda de um jeito similar. Um filme de superação comum não ficaria no páreo com um Menina de Ouro, por exemplo. Deve-se haver um diferencial. E O Vencedor, novo filme do - indicado ao Oscar - David O. Russell, é um filme de superação que quer fincar seu pé na calçada dos filmaços do gênero.

Rotular o filme apenas como de superação seria um erro. Flertando com o esquema de filmes como Os Infiltrados e o próprio Atração Perigosa, O Vencedor entrega um interessante retrato sobre o povo de uma cidade de interior americano. Se nos filmes de Scorsese e Affleck a abordagem era policial, Vencedor tem um panorama dramático-cômico pra sua vizinhança, retratada com leveza pelos roteiristas Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson. E esse ritmo, que demonstra bem a admiração dos roteiristas e de O. Russell por Lowell, o local onde Micky Ward nasceu, é intenso e nunca deixa a película cair no esquecimento. A atmosfera dos anos 90, recriada de forma simples e competente, faz com que cada nuance do drama da família seja potencializado, dando um tom mais real ainda a tudo ali. A história de boxe de Micky Ward, retratado de forma enérgica e eficiente por Mark Wahlberg, é a principal, mas o pano de fundo divertido dos curiosos habitantes de Lowell é o tal diferencial que O Vencedor usa para tentar calcar seus pés na memória.

Percebendo-se isso, é interessante constatar que O Vencedor é tão uma crônica sobre uma família desfuncional com origens irlandesas quanto um filme de boxe. Da mesma forma que Infiltrados e Atração retrataram os criminosos tradicionais e as pessoas normais daqueles locais, O Vencedor usa esse pano de fundo para sua história. Porém, como é um filme dramático, Vencedor se foca bastante nos conflitos internos. E justamente deles vêm as cenas mais pesadas do filme.

Mas, curiosamente, elas não são muitas. O filme de David O. Russell se foca bem no lado cômico dessa vizinhança e da própria redenção de Micky e seu irmão Dicky. Dando uma estética cool ás partes de boxe(utilizando recursos como a montagem ágil e frases de efeito) e cômica em várias partes do núcleo familiar, o roteiro tem como seu maior trunfo a consciência de sua natureza. Afinal, as situações em que somos apresentados não poderiam ser muito levadas á sério. A maquiada Alice, mãe do clã boxeador, interpretada com intensidade notável por Melissa Leo, disperta risos até mesmo pelo seu modo "elegante de interior" de se vestir. O artificial cabelo loiro de Alice é uma inteligente sacada visual. Ao mesmo tempo que nos apresenta um elemento recorrente dos anos 90, retrata bem o espírito da personagem(e do próprio filme). Apostando ferrenhamente no humor e no "feel good movie", O. Russell encontra nos caricatos núcleos familiares uma fonte cômica inusitada. A situação bizarra dos irmãos Micky e Dicky serem de pais diferentes ou a forma manipuladora com que Alice agencia a carreira de Micky é captada pelas lentes do diretor de forma irônica e extremamente divertida. E se poderia haver qualquer divergência entre o estilo cômico de O. Russell e um possível tom sério do roteiro, isso logo se invalida. Afinal, as 7 irmãs Eklund-Ward tem um desenvolvimento raso justamente para se apoiarem no humor, o que surge como uma decisão corretíssima, com grande destaque para a briga entre Charlene e as irmãs.

Charlene, por sinal, é construída com esmero pelo roteiro e pela magnífica atuação de Amy Adams. Ela é o parâmetro para Micky bater de frente com sua família e tomar um rumo de verdade em sua antes fracassada carreira de boxe. As partes em que Micky começa a ganhar voz na família são reveladoras, fundamentais pra narrativa e, novamente, captadas com leveza divertida.

E mesmo o retrato da carreira de boxe dos irmãos sendo esquemático, a ciência das limitações narrativas que o roteiro se impõe são fundamentais pra apreciação da história. Estão lá todos os arcos da superação do filme de boxe, mas somados ao núcleo familiar e ao tom surpreendentemente cômico, O Vencedor chega com dignidade a seu clímax, que é espetacular justamente pela construção formidável de situações e personagens que o filme de O. Russell tem. Deixando o público tenso e com uma torcida sincera pelo protagonista na obrigatória luta final, O. Russell realiza um filme redondinho e divertidíssimo, que entretem de maneira diferente e, acima de tudo, inteligente. E é nisso que O Vencedor vence de algo totalmente esquemático como Atração. O pano de fundo e o humor são fatores determinantes pro brilhantismo do roteiro.

Essas limitações narrativas não só são ajudadas pela parte cômica como são utilizadas em prol das atuações. Visando a possível caricatura que cada ator poderia ser sujeitado a fazer pelos seus papéis exagerados, o roteiro abre essa brecha pro overacting com rara qualidade. E nesse caso, a extrapolação de emoções é utilizado de forma interessantemente benéfica. Melissa Leo e os coadjuvantes podem estar atuando no limite do over, sim, mas a naturalidade com que tudo é encarado pelo filme é notável. Sendo assim, O Vencedor entra naquele seleto grupo de "filmes de atuação", desde a performance contida do ótimo Mark Wahlberg até a merecedora do Oscar, de Christian Bale.

O personagem de Bale, aliás, é o motivo maior das partes dramáticas e até a metade da projeção, quase engole o filme pra si. Mudando fisicamente de forma assustadora, Bale ainda cria seu personagem com competência equivalente á de seus Patrick Bateman e Bruce Wayne. A grande prova disso é a sequência mais pesada do filme, a exibição do documentário da HBO sobre o vício de Dicky Eklund. Arrebatadora e palco explícito destinado a Bale demonstrar todo seu talento.

Sendo bem sucedido no núcleo familiar quanto no inspirador e revigorante núcleo do boxe, O Vencedor é um perfeito feel-good movie. Uma diversão com um tom mais sério que o cinemão pipoca, mas sem dúvida vitoriosa e leve por ser ciente de suas limitações narrativas. Diferente de um Quem quer ser um Milionário, O Vencedor é um conto feliz, mas realista e firme nas emoções, diferente do episódico e fantasioso filme de Boyle, do qual Vencedor só compartilha o bom humor. Sem chegar perto de ser uma obra-prima, mas uma película que deixa uma felicidade agradável no ar. Merecedor de sua indicação ao Oscar(ainda que Christopher Nolan e Danny Boyle tenham feito direções muito mais competentes que O. Russell), O Vencedor é uma boa surpresa. Bom pra ver com descompromisso.

Sem surpresas, preciso, enérgico e cômico. Quem diria. Overacting bem feito é outra coisa.

**** 4 Estrelas

O Discurso do Rei

Equipe brilhante faz pronúncia de filme conservador soar bem .

Há de modo geral, muitas maneiras de se contar histórias no ramo cinematográfico . Existem vários estilos, desde os filmes de festival - que vão contra as regras fundamentais aceitas pela maioria do público médio - até os blockbusters mais previsíveis e batidos . A verdade é, que nesta última década, tivemos muitos cineastas rebuscando sua didática narrativa e fazendo filmes com orginalidade digna de se tornarem clássicos . São novas maneiras de se fazer filmes , métodos inovadores , e só pra ilustrar , podemos citar exemplos recentes como A Rede Social e Scott Pilgrim , que têm como seus destaques, o roteiro e a montagem, respectivamente . Sendo o filme de David Fincher o mais agraciado pela crítica geral , seria muito gratificante ver A Rede Social ser coroado como o melhor filme de 2010 no Oscar . Seria um passo a frente, uma verdadeira evolução, aceitação do novo . Mas na disputa da Academia desse ano temos um embate fortíssimo de duas realidades - o inovador X o conservador .

E o conceito de conservador se encaixa muito bem para o filme inglês aclamado internacionalmente , O Discurso do Rei , que se enquadra neste ''rótulo'' por justamente estar no estilo de narrativa que possui características clássicas, com certa dose de previsibilidade e um quê de esquematização . Não dá pra culpar, porém, de maneira nenhuma, quem realiza o filme . Apesar de ser uma trama baseada em fatos , era inevitável que o longa de Tom Hooper acabasse contendo diversos conceitos clássicos , dignos de filmes conservadores, que justamente recebem esse adjetivo por conservarem certas qualidades já visitadas em filmes anteriores. Contudo, por mais que O Discurso do Rei tenha uma mensagem um tanto quanto ultrapassada , fica anos luz de um filme dispensável . É um longa estruturalmente atrasado, mas traduzido em tela com real genialidade . Uma história redonda e básica , mas que tem na sua equipe - brilhante, no mínimo - o agente qualificador.

A trama , como poderão ver, tem certo tom esquemático a princípio . O Duque de York, Bertie(Colin Firth) , segundo filho do Rei da Inglaterra George V ( Michael Gambom) , é um príncipe com um problema fatal na sua carreira. Sofre de gagueira , o que complica muito sua atividade frequente fazer discursos dos mais variados . Para tentar curar seu distúrbio, sua mulher Elizabeth ( Helena Bohan Carter) recorre a um terapeuta da fala muito bem-sucedido , Lionel Logue ( Geoffrey Rush). Com um aprofundamento no problema psicológico que causa a gagueira do príncipe , Logue precisa ajudar Bertie na sua hora mais escura - A Inglaterra na eminência da II Guerra , e o fardo de ter que assumir o trono abdicado por seu irmão ( Guy Pearce) após a morte do pai .

De fato, a interface estrutural do roteiro de David Seidler é um tanto quanto clássica, desenhando uma história de superação á moda antiga , que já vimos tantas e tantas vezes . Tal tipo de trama já está no nosso inconsciente , e já partimos , portanto, de um ponto conhecido quando nos referimos a Discurso . Invariavelmente, também chegaremos ao mesmo destino conhecido, já que a própria sinopse já revela boa parte do conteúdo do longa . É esse ar de esquematização e de previsibilidade que pode tirar alguma força em relação a relevância do filme no contexto do cinema atual . Mas não tira, de forma nenhuma, a força que O Discurso do Rei possui de forma isolada, sem adentrar no mérito de comparação com outros longas candidatos a prêmios . Isso ocorre por que , mesmo que o seu conteúdo soe familiar , a sua forma, ou seja , sua condução , combinada com suas atuações , é muito acima da média .

Há vários pontos que servem para enaltecer a força que consiste na condução do roteiro . O tratamento muito cauteloso com cada um de seus personagens é talvez o mais clichê dos comentários sobre o filme, mas é a mais pura verdade que precisa ser mencionada . Um desenvolvimento muito humanista , que tem uma sensibilidade nas ocorrencias de suas emoções muito particular . Além disso, há momentos presentes em Discurso que geram um baque inevitável . É a boa colocação de uma imagem que substitui qualquer palavra gaguejada por Bertie, como no momento em que o personagem de Firth absorve os vídeos de Hitler esbravejando como líder e orador inquestionável , enquanto ele mesmo mal pode ler um texto para seus súditos . Não por acaso , Discurso do Rei utiliza esses momentos tão bem . Na melhor tradição do cinema clássico, á moda antiga, o que importa na película são as emoções transportadas para a tela, através de atuações verdadeiras, sendo a importância da trama estrutural visivelmente diminuída . Talvez então o grande trunfo do novo filme de Tom Hooper seja , ao se portar como conservador, absorver essa experiência por completo, possuindo alguns de seus problemas, mas principalmente, suas qualidades.

E se o roteiro tem na sua condução uma ou outra cena já batida , ela se diferencia pela câmera estilizada do competente Tom Hooper. Um momento claro onde a câmera de Hooper fez a diferença é na sequencia típica de ''treinamento'' , que é inerente a vários filmes de superação . Aqui, o cineasta utiliza cortes rápidos para dar a sensação de elipse temporal . Funciona para não deixar a cena cair no lugar comum . Além de funcionar nesses momentos, Hooper também consegue impor takes de estética elevada . O jeito de jogar a câmera para trás em determinados closes só engradece as feições dos atores, refletindo consequentimente no engrandecimento de seus personagens .

Personagens esses, que já seriam grandes o suficiente se dependessem exclusivamente da performance sublime do belíssimo elenco de Discurso do Rei . Verdadeiramente , este longa tem um dos melhores castings de 2010 - um ano que teve excepcionalmente castings muito bons como True Grit, Black Swan, Rede Social ,etc -se não for o melhor . Aqui, temos uma entrega completa por parte de todos os atores . Colin Firth, é o que mais se destaca, tendo uma interpretação completa , muito diferente do que já fez em outros filmes. O jeito anêmico de atuar de Mr. Darcy , de Bridget Jones , dá lugar a uma transformação assustadoramente competente . Firth reafirma aqui que é um ator eficientíssimo, se pegar um papel decente . Em determinado momento, a imersão no papel é tanta, que Firth simplesmente se transfigura, no nosso olhar, por alguns instantes . Desaparece no papel, literalmente , e incorpora todo o personagem . Perfeito . Geoffrey Rush também atua com grandeza e tridimensionalidade invenjáveis, e Helena Bohan Carter está perfeita no papel , nos deixando quase acostumados com sua competência habitual . Atuações sensacionais, que reforçam a ideologia de cinema a moda antiga (atores são o centro) abraçada pelo filme.

Por essas e por outras , é estreito enxergar em O Discurso do Rei um novo Shakespeare Apaixonado . Apesar da comparação ser tentadora para alguns, é exacerbadamente superficial . Primeiro por que há um abismo de qualidade que separa os dois filmes . Segundo por que Shakespeare Apaixonado usa seu estilo clássico com certa falsidade , sem se entregar, enquanto Discurso se entrega a esse estilo de corpo e alma , com honestidade, sinceridade e profundidade . Está longe de ser um longa supervalorizado. Tem a apreciação que merece, e merece muito. Um filme gago em sua premissa, mas que com a atuação de uma equipe eficiente, conseguiu fazer um belo discurso em nome do cinema á moda antiga .

Resta avisar a Academia, de que filmes no estilo deste, são oscarizados desde sempre. Premia-lo ao lugar do que é inovador, por mais qualidades que este tenha, é um sinal de estagnação .

5 Estrelas ***** - Excelente .