Spielberg toma Lincoln como mito em fórmula biográfica.
Em 1865, logo após o fim da Guerra Civil norte-americana, o
poeta Walt Whitman escreveu o poema “O Captain! My Captain!”, uma grande
metáfora sobre toda a jornada de unificação do país sob os novos conceitos
abolicionistas adotados e defendidos pelo presidente Abraham Lincoln. Os
marcantes versos de Whitman foram escritos após a fatídica morte do presidente,
e tomam este como o capitão de uma embarcação que, logo após concluir sua
“viagem aterradora” com sucesso, morre no convés e deixa toda sua tripulação em
estado de agonia e frustração.
Lamentavelmente, o único sentimento que o filme de Steven
Spielberg compartilha com o brilhante texto de Whitman é o de frustração. Uma
frustração decorrente de uma obra falha, superficial e descartável, que procura
recontar os fatos, mas não investiga-los.
Entretanto, Spielberg já foi capaz de gerar os sentimentos despertados
pelo poeta do século XIX. Já o fez incontáveis vezes, e a última foi no
espetacular Munique, um longa maduro e intrigante que retratava a relação
conturbada entre a família e a violência de maneira espetacular.
Ironicamente, um dos co-escritores responsáveis pelo belo
script de Munique foi Tony Kushner, o roteirista de Lincoln. Adaptado do livro Team of Rivals: The Political Genius of
Abraham Lincoln de Doris Kearns, o roteiro de Lincoln toma por princípio os
meses que antecedem a votação da 13ª Emenda no Congresso, o documento que,
entre outras coisas, traria a escravidão nos EUA ao fim. Desse modo, somos
introduzidos ao dilema do presidente (vivido por Daniel Day-Lewis): tentar
selar o acordo de paz com os Estados Confederados – e assim colocar em risco a
aprovação da Emenda – ou buscar o apoio necessário para a maioria na Casa dos
Representantes, assinar a abolição e assistir, nesse meio tempo, ao banho de
sangue que o país enfrenta.
O texto de Kushner aborda o tema da abolição – que é a
discussão ideológica central no filme – com certo idealismo reforçado, que não
só era incompatível com o espírito da época, mas também seria difícil de
engolir até nos dias atuais. Há em Lincoln muito maniqueísmo de fácil
deglutição, e pouca dissecação de assuntos.
É muito mais fácil de fazer, mas também de se absorver, uma narrativa
que desenhe uma situação de forma bidimensional. Kushner não se atreve a ousar,
a investigar mais de perto os contornos turbulentos daquele período. Mas se não
faz isso, não é por falta de conhecimento ou incompetência – afinal, Munique é
um elaborado retrato de personagens cheios de méritos e falhas de caráter,
personagens humanos. Se Tony Kushner opta por uma abordagem superficial, é por
puro medo. Medo de ser mal
interpretado, de dar a entender algo errado num tema tão crucial e polêmico na
história dos EUA.
Medo que é compartilhado por um dos maiores corações moles
que a indústria recente já viu, que se trata do novo Spielberg. O medo que Spielberg nutre é o de ousar e
sujar sua imagem como bom moço, mas principalmente de sujar a imagem de um dos
ícones mais importantes da América do Norte – Abraham Lincoln. Desse medo, surge um respeito demasiado, que
interfere desde o modo como o personagem é retratado e culmina até mesmo na
direção de Spielberg. A originalidade passa batida, e o diretor escolhe usar a
fórmula básica da biografia: mitifique seu biografado e deixe o resto falar pro
si mesmo. E o mito de Lincoln parece furado, afinal o tomamos como algo a ser
adorado, mas tampouco sabemos o porquê
Lincoln mereceria ser reverenciado. Isto porque seus realizadores não se atrevem
a explorar sua persona a fundo, e se contentam com a sempre segura
superficialidade. Assim sendo, Spielberg
toma o projeto para si mais como um desarme de bomba do que um longa-metragem.
Qualquer passo fora da fórmula pode causar uma explosão de danos incalculáveis.
O que salva o exercício formulaico de Spielberg do total
fracasso é a humanidade trazida por seu talentoso elenco. Daniel Day-Lewis
consegue encarnar Lincoln com estofo emocional interessante, dedicando sua
atuação – baseada no método – a incorporar cada detalhe dos hábitos do
ex-presidente: Sua postura elegante, mas um tanto cabisbaixa; seu semblante
calmo, mas claramente perturbado por toda a sorte de eventos que precisa lidar.
É uma pena que o trabalho esmerado de composição de personagem realizado por
Day-Lewis não encontre eco em Kushner ou Spielberg. Entretanto, a performance do ator inglês é
acompanhada de perto pela interpretação de Tommy Lee Jones, que vive um
abolicionista radical que é também uma das
lideranças do Congresso. Seu personagem admirável só não merecia sua
cena final, que revela um motivo tão óbvio e parco para seu ativismo. Outro
problema de responsabilidade do roteiro.
Lincoln é um filme padronizado no esquema recente de
produções de Spielberg. Quanto mais simplória, superficial e melodramática for
uma trama, melhor. Aliás, o melodrama exagerado e forçado de Spielberg chega a
doer quando entoado nas trilhas genéricas e megalomaníacas de John Williams.
Infelizmente, isto se repete em Lincoln, em mais de uma infeliz oportunidade.
Spielberg encontra-se hoje em dia na sua fase “lugar seguro”, e tudo aquilo que
for grandiloquente e formulaico já tem prioridade na sua filmografia. Talvez
seja por isso que seus filmes aventurescos sejam aqueles que estejam se saindo
melhor – como o Aventuras de Tintim. De
qualquer forma, não é o caso de Lincoln. Um longa que foi feito quase 150 anos
depois que os fatos realmente ocorreram, com 150 minutos de duração, não
deveria ser tão facilmente superado, tanto em estilo quanto em profundidade,
por um poema de 6 estrofes feito no calor recente dos acontecimentos.
2 Estrelas ** - Fraco.