Old School Nerds

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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Confiar

O distópico conto de fadas de David Schwimmer.

Annie é uma menina de 14 anos. Ela é esportiva, feliz, gosta de se exercitar, cuida de sua saúde muito bem. Mas gosta de chats também. A eficiente sequência pré-título funciona justamente para nos mostrar bem a personalidade da adolescente. E é esse chat, aparentemente inofensivo, que se tornará o motivo de uma ruína. Uma extensão da vida real, já que Annie não consegue encontrar um menino bom fora do computador. A falta de confiança na sociedade, a descrença em sua geração. E essa descrença a leva a caminhos extremos. Não apenas a garota, mas sua família inteira.

E é sobre isso que Confiar fala. Ele fala de inocência perdida, melodrama, obsessão e amor. Mas fala, sobretudo, sobre confiança.

A família de Annie é feliz. Dá à menina o suporte, tanto emocional quanto de criação, máximo que ela precisa. Porém, se o tópico envolvendo sexualidade é bem natural com o filho mais velho, com a menina, dos recém-completados 14 anos, é mais difícil. Não que seja algo intocável, que é proibido até mesmo de comentar, mas o sexo torna-se desnecessário ao debate devido á personalidade fechada da adolescente. Meiga, retraída, reservada, Annie não gosta do senso comum das garotas mais "maduras" que discutem o sexo em suas minúcias com uma naturalidade estranha aos olhos dela. Não que ela seja a nerdy freak maniqueísta tipíca dos filmes reducionistas (o que, com certeza, mataria um projeto como Confiar desde a concepção), mas apenas uma garota diferente das outras. Por isso mesmo que, ao ver uma garota de sua idade com os seios de fora, em cima de um touro mecânico, a reação não é de repulsa; é de graça.

Porém, existe Charlie. Compreensivo, atlético, bonito. E o único que entende os dilemas e questionamentos de Annie. Trocando confidências com o garoto de 16 anos, a menina vê na sua vida pacata e calma um refúgio. Vendo naquele relacionamento virtual um futuro promissor (e é angustiante ver a felicidade meiga de Annie ao pensar com carinho no "menino"), a adolescente começa a se abrir mais sentimentalmente para o garoto de 20 anos. "Por quê você continua mentindo?", ela pergunta chorando para a voz inacessível do telefone, quando revela ter 25 anos. Mas o amor e inocência são maiores que isso e o encontro se torna inevitável. Para o cético espectador, não é surpreendente quando avistamos o homem de meia idade no shopping. Mas o rosto sofrido de Annie não poderia ser mais doloroso.

O homem ganha voz e expressão. E um rosto. Seu poder coercitivo é enorme e não tarda para Annie entrar em seu carro. A pacata trilha da vida da garota encontrava um novo caminho, que não poderia ser mais doloroso (filmar o extenuante exame no corpo de Annie através dos passos em relatório é uma sacada excepcional). O maniqueísmo não dá as caras. A dor é visceral.

Aliás, é em maniqueísmo que Confiar encontra seu extremo oposto. O filme, realista na construção de seus personagens e situações, não cria máscaras nos diálogos referentes aos adolescentes. Diferente de um filme como As Melhores Coisas do Mundo, Confiar demonstra a futilidade de maneira mais sutil, sem jogar tão na cara. Se no exemplar brasileiro a futilidade é perigosamente romantizada, aqui a imparcialidade é essencial, ao analisar o conceito sem julgá-lo certo ou errado. E isso já evita que o filme, com um tema pungente e vigente, imploda em sua falta de transparência. Portanto, não se estranha o imediatismo que o filme passa. Quando o filme começa, Charlie já é amigo de Annie e tem uma relação próxima á ela. David Schwimmer, investindo no melodrama, está mais interessado nas fraturas que o pedófilo deixará do que no ato de aproximação da vítima com o criminoso. Se há um erro ou outro (habilidoso agente do FBI esquece sua maleta num encontro?), é pouco para destruir a interessante crônica com tom de fábula distópica. Todos os arcos na introdução, emocionais ou narrativos, são diretos ao ponto, o que é fruto da cautela (e compromisso com o realismo) dos realizadores.

O que nos leva à técnica apurada do projeto. Essa fidelidade com o conceito da Verossimilhança não se restringe apenas ao bom roteiro escrito por Andy Bellin e Robert Festinger. O diretor Schwimmer, dando aqui seu primeiro grande passo como diretor após o fraco Maratona do Amor, consegue utilizar uma eficaz lógica interna ao focar nos seus personagens com enquadramentos rígidos, sempre retratando bem a frieza necessária ao filme. Além disso, Schwimmer é competente ao usar de um realismo sem utilizar a câmera na mão, um recurso que qualquer diretor com senso técnico menos apurado usaria. O diretor também é eficaz ao utilizar a montagem de Douglas Crise, acrescida com soluções visuais, para causar momentos emocionais, como o dilema de Annie ao ser convidada para se encontrar com Charlie pela primeira vez. Soberba também é a passagem em que Annie insiste em manter as aparências do que ocorreu, ao falar em off que está tudo bem, mesmo chorando compulsivamente no vestiário feminino. Schwimmer demonstra habilidade nessas passagens e encaixa um perfeito equilíbrio entre técnica e emoção.

Fundamental também, na ótica verossímel de Schwimmer, é a fotografia do ótimo Andrzej Sekula, que utiliza de uma iluminação mais sutil para registrar os momentos mais tensos dos dias de tempestade da família Cameron. Guardando uma linguagem visual mais elaborada apenas pros momentos de impacto (o foco de Annie na luz durante o estupro, a luz divina que banha o rosto ainda virginal da garota em seu quarto), o que demonstra a inteligência do casamento entre técnica e roteiro, em prol do realismo. Tudo para tornar mais pesado o drama de Annie.

O choque na família é mais forte ainda. Fugindo de um esquemático e óbvio caminho que o filme poderia tomar, se focar apenas no estupro, Schwimmer acha mais interessante estudar as consequências do ato. Lynn, a mãe, se entrega a dor ao ficar de mãos atadas. Como mulher, o sofrimento é mais captado pela figura materna. Will, o pai, encara enraivecido o fato e, em busca de uma cruzada desesperada por vingança, se esquece que a maior vítima está no quarto ao lado do seu. Não respeita os pedidos clementes da filha (como não contar ao irmão o que ocorreu), não entende a dor real do imbróglio (seriam as fraturas apenas carnais?). O terror de sua personalidade acaba retratado por uma sequência-delírio exagerada, em que Will finalmente se vinga. Bem mais brilhante, porém, é a festa de seu trabalho, em que vemos um Clive Owen com os olhos desgastados, "vendo" um cartaz de sua filha, com roupas íntimas. O orgulho de pai, que se considera culpado por não proteger seu bem maior, acaba ultrapassando o senso urgente de compreensão. Annie perdeu sua virgindade, sim, mas precisa de apoio. Está apaixonada.

O apoio da psicóloga, as reflexões angustiadas da protagonista e seu olhar perdido. Tudo é importante para reconstruir uma personalidade que conheceu, da maneira mais pesada possível, a crueldade do ser humano. Crueldade essa que acaba acometendo seu pai, tão animalesco quanto o desprezível pedófilo. Porém, quando o baque é entendido, quando o choque de realidade atinge em cheio o coração da menina, não é o abraço da psicóloga que vai curá-la. Não é o amor incondicional de sua mãe, que tenta lidar com a tragédia da melhor maneira possível. É o amor ao seu pai perdido, que se deixou destruiu por um erro incontrolável. O pai está certo em ter raiva? Sim, com certeza. Ele viu uma face mais chocante da filha, ao ler a conversa do chat ("Nossa filha parece uma atriz pornô!" grita Owen, com um ódio retumbante e medonho). Mas um pai, mesmo na situação mais extrema, deve saber que nenhuma vingança substitui o amor pela sua prole. Nada corrompe o senso de um homem correto. E isso é o que torna, como demonstra o breve tape nos créditos, Will e Charlie como nêmesis.

A conversa na escada é fantástica por fechar o problema, mesmo que da maneira mais difícil possível, marcada á ferro e fogo na alma do espectador. Liana Liberato, brilhante e digna de diversas premiações, demonstra mais maturidade que todos em cena nos 104 minutos de projeção. Racional, mesmo com ódio, a menina ensina a seu pai o que deve ser feito na situação. E o abraço na beira da piscina, depois do parecer emocionado de Will, não poderia ser mais bonito. A confiança deve voltar. Will deve se lembrar de quem é sua filha e Annie deve se lembrar que é seu pai. Ambos devem voltar a ser confidentes.

O bom Confiar pode até ter seus problemas estruturais esporádicos, mas sabe o que pensa e o que tem para dizer.

**** 4 Estrelas

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