José Padilha monta épico do crime organizado numa colcha de retalhos de fatos verídicos.
Em 2007, a grande sensação do cinema nacional era o filme Tropa de Elite. Cinema entre aspas, pois o filme foi lançado nos cinemas depois de já ter sido assistido pela esmagadora maioria do público por meio da pirataria . Sucesso absoluto, indiscutivelmente, o filme gerou bordões inesquecíveis, personagens contundentes e profundos, e conseguiu mostrar a história da violência urbana de um ponto de vista diferente : o da polícia . Arrasador, todos ficaram extasiados pela quantidade de informações interessantes e de todo um panorama genial que a teia narrativa do filme de José Padilha criava . Mesmo sendo chamado por alguns de fascista, pelos métodos agressivos que os policiais do Bope dispunham , o primeiro Tropa foi abraçado pelo público em geral . Não era por menos - afinal , tudo ali esclarecia o mundo de drogas e violência no Rio de Janeiro, e mostrava suas causas e consequencias, muitas vezes ligadas ao mundo de quem assiste.
Tropa de Elite 2 não faz diferente. Segue a linha de construir uma história que mistura fatos verídicos com personagens ficcionais ( ou quase ficcionais, por referências quase diretas a personas da vida real) . Só que desta vez, em 2010, a história é outra . A estrutura montada e desmontada no primeiro longa de anos atrás era de violência urbana mostrada onde ela acontece - nas ruas, nas perseguições, em tiroteios. Nessa sequencia, a estrutura se modifica, os inimigos se diferem, e tão logo também o modo de se mostrar a história. A narrativa agora abrange mais , muito mais, abraçando tudo e todos, montando um panorama visto de cima, com mais personagens e mais conexões. Tudo isso se deve ao fato do comando dos campos de batalha - as favelas cariocas - ter mudado. Não são mais os traficantes que comandam o morro, e não mais é o tráfico de intorpecentes que gira a engrenagem do crime organizado . São as milícias, comandos de policias veteranos da PM carioca que asseguram o domínio do morro e se ligam no povo que lá habita através de cobrança de várias taxas - desde o ''gatonet'' até a venda de gás de cozinha . E esse esquema de domínio sobre o povo, é claro, não é feito com as mãos limpas , e está a milhas de se tornar algo legal.
E é esse o inimigo que o subtítulo aponta. Nesse cenário se monta a trama do novo filme de Padilha . Depois de pouco mais de10 anos desde os acontecimentos do primeiro filme, Nascimento ( Wagner Moura) não é mais um dos comandantes do Batalhão, e subiu ao posto de que nenhum Caveira jamais havia chegado - virou Sub-secretário de Segurança. De um posto mais alto, Nascimento começa a ter mais visão de tudo o que ocorre de novo no mundo da violência carioca - e precisa agir contra ela. Só isso já bastaria para causar uma rede de problemas suficientemente grande, mas o nosso herói carrega ainda mais fardos. Seu filho , agora já crescido, não tem uma boa relação com ele , e por vezes escancara para o pai que não é violento, como Nascimento. Tal visão do filho sobre o pai se decorre dos eventos mostrados na televisão, onde em alguns deles seu novo padrasto, o ativista dos diretos humanos Fraga (Irandhir Santos) critica o modo violento pelo qual o Bope opera .
Toda a estrutura de narrativa de Tropa de Elite 2 está mais profunda, mais densa e mais geral. Tudo mostra uma grande evolução, uma grande maturidade do novo filme. A observação de Wagner Moura em entrevistas foi muito bem colocada. " Este filme é mais maduro que o primeiro". Afirmativa inegável. No longa, há símbolos que comprovam isso. Se no primeiro filme o calo que era pisado era do playboy maconheiro que finaciava o tráfico, no segundo os alvos das críticas são algum tipo de evolução dos alvos iniciais. Desta vez são políticos corruptos, ativistas que ''protegem'' bandidos e toda a gama de milicianos que se instaura na gerência do crime organizado.
A diferença estrutural básica desse longa para o anterior está na sua amplitude. Se em 2007 se usava tempo de tela para montar toda mecânica da polícia e do Bope, como em um bom Full Metal Jacket brasileiro, agora o Batalhão de Operações Especiais funciona como um dos agentes atuantes em um cenário instaurado pela invasão das milícias nas favelas cariocas. O cenário se amplia, e o roteiro aumenta sua densidade. Cada personagem tem sua função muito bem definida em todo o contexto , tem uma razão de existir, e há tempo de tela sobrando para se desenvolver. Os roteiristas desenrolam a saga de uma maneira que remete a um épico. Um verdadeito épico criminoso, onde o realismo marca presença tão forte, que destinos são traçados pelos realizadores sem medo nem pena, como num digno filme ensemble cast - Como Traffic e Crash .E o mais interessante disso tudo é modo como duas coisas quase imiscíveis se encaixam tão bem nessa franquia . Realidade e ficção . Ora, se o objetivo é contar uma história de uma cidade real, com elementos reais, numa linha cronológica real, como colocar personagens fictícios, e situações por vezes fictícias num roteiro? Pois Padilha e Bráulio Mantovani conseguem arranjar caminhos para encaixar tudo, sem fugir da realidade, mas também sem copiar passagens dignas de ''baseado em fatos''. É genial o modo pelo qual Tropa 2, assim como o 1, respira e vive nesse vai- e- vem entre ficção e realidade. O que nas mãos de alguém com pouco talento podia virar simplesmente um filme-denúncia panfletário, Padilha e Mantovani convertem em material original de primeiríssima linha.
Este longa também é mais bem resolvido quanto ao aspecto da ideologia. Seu predecessor foi atacado veementemente por muitos como um filme extremamente fascista, violento e com métodos extremamente questionáveis . O filme flerta, em seu princípio, com algo parecido, como Direitos Humanos X Pensamento policial . Entretanto, espertamente, essa configuração é apagada ao longo de sua exibição. Fica logicamente prejudicada a discussão, quando um inimigo em comum aparece. É esse o papel da Milícia . Porém, é claro, Padilha e Mantovani , fazem questão de deixar clara suas opiniões a respeito de cada assunto, afinal aquele é o ponto de vista que Nascimento terá, e o personagem não é de desconversar . Tanto não é , que o filme tem a audácia de apontar o rifle da crítica para quem merecer, sem distinção. Certos políticos que assistirem ao filme sairão da sala um tanto quanto agulhados, e sairão agulhados justo numa época de eleição. Sensacional. Outro ponto positivo é a contrução de personagens. Eles são tão profundos e tão realistas - Padilha não os filma e nem os escreve com o mínimo de maniqueísmo - que nos sentimos tocados por eles desde o princípio . De alguns, temos raiva, de outros, adoração. E de alguns, ambos - como o personagem de Irandhir Santos, o deputado Fraga. Todo esse esmero na carpintaria dramática gera uma sensação de tensão constante, desde que o primeiro frame é exibido até o fade-out final.
E o talento de José Padilha na direção ajuda muito o filme . A câmera na mão não cessa, e até em momentos em que a câmera poderia ficar apoiada , Padilha a segura nas mãos. O leve tremer do instrumento que registra a ação gera um tom mais documental , e isto já havia sido testado no primeiro longa. Aqui, ele utiliza desse artifício em larga escala, e o combina com seus closes fechadérrimos, que acabam criando a sensação de claustrofobia necessária . Na ação, que é pontuada na medida exata , o tremer fica maior, e logo o tom de documentário também. De fato, a imersão que tais artifícios geram já foi testada antes, mas aqui funciona ainda melhor .Pode-se dizer, então, que Padilha não inventa moda, mas que seleciona muito bem o estilo que usar, no momento em que usar .
Acoplados a isso, temos os termos técnicos, que falam por si só . É impossível não olhar para a fotografia belíssima de Lula Carvalho e não ficar encantado. Gera sensações variadas e se adequa ao momento do filme sem alterar sua paleta . Em determinados momentos, passa sujeira, em outros, passa um tom árido, e em outros certo tom documental. Fora sua beleza contrastante, que já era chamativa logo nos primeiros trailers. A música de Pedro Bronfman também passa a tensão necessária sem abusar e sem descompassar. Serve como pano de fundo muito bem, se entrelaçando ao filme e não se destacando ou parecendo algo aleatório. E por fim, nem se precisa comentar o show comandado por Daniel Rezende na Montagem. Rápida como em Cidade de Deus, ele não foi indicado ao Oscar a toa.
Para coroar o filme, temos as atuações. Mais uma vez, sem nenhum erro, sem nenhum ator mal escolhido, e com talento de sobra. Destaque óbvio para Wagner Moura, que parece ter absorvido por completo a experiência do filme. O perfil de seu personagem está gravado não só por suas expressões faciais ou falas orgânicas . Sua postura corporal está modificada. O velho Nascimento firme e forte do primeiro filme está um trapo fisicamente, e sua atuação é a personificação perfeita. Os atores Irandhir Santos e Sandro Rocha também são espetaculares em seus papéis, e conseguem passar o filme todo sem derrapar, sem saltar caricaturas e costurar uma tridimensionalidade respeitável. O mesmo também vale para o sempre dedicado Milhem Cortaz. Quem também merece citação rápida aqui é o ator André Mattos. Quem conhece sabe que ele imitou perfeitamente o estilo de Wagner Montes, apresentador do Balanço Geral carioca, capturando seus trejeitos de forma muito verossímil.
De fato, Tropa de Elite 2 supera o seu original. Por ter mais maturidade, maior visão e maior apuro técnico. Uma verdadeira obra-prima do cinema nacional, que não existe por acaso, e que sabe explorar da maneira mais clara o possível os acontecimentos do dia-a-dia do Rio de Janeiro. Mais uma vez, Padilha e Cia jogam na nossa cara a realidade com toques de ficção muito bem caracterizados, passando informação e entretenimento simultaneamente, sem soar panfletário em momento algum. Filmes nacionais desse porte, que conseguem dosar sem exageros elementos variados, merecem ser vistos. E esse novo caminho tortuoso do nosso herói trágico Nascimento merece ser visto e revisto, definitivamente .
5 Estrelas *****
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