Um complexo quebra-cabeça que brilha ao se resolver.
Nos anos 80, a ficção-científica apostava em uma abordagem mais aventuresca, como as aventuras de Spielberg, a ópera espacial de George Lucas e blockbusters para toda a família, como De Volta para o Futuro. Nos anos 90, a lógica se seguiu, com filmes que usavam a ficção pra diversão, como Independence Day, Armageddon e O Quinto Elemento. Claro que esse espírito mais descompromissado era bem mais respeitável que os monstros e fantasias de zíper das sci-fi dos anos 40 e 50, mas estava longe de ser o tour de force intelectual proporcionado por 2001 - Uma Odisseia no Espaço. E se tínhamos inteligentes sci-fis como Gattaca, era apenas no circuito mais restrito. Porém, em 1999, um filme abalou as estruturas do que se conhecia como Ficção-Científica Blockbuster: Matrix. Encaixando conceitos filosóficos e sendo hábil em tudo que se propunha, o filme dos Wachowskis se revelava um belo longa que fazia referências pop, desenvolvia bem seus personagens e ainda criava todo um mundo enquanto segurava suas cenas de ação incríveis. Mudando a ficção pra sempre, Matrix iniciava uma tendência tão visual(o cyberpunk estilosíssimo) quanto narrativa(qualquer sci-fi filosofa a partir dali).
O que nos traz a Cidade das Sombras, do diretor egípcio Alex Proyas. Se Matrix mudou o gênero dali pra frente, Cidade foi o precursor da mudança. Não apenas no contexto histórico, mas avaliando de um modo geral. O filme, lançado em 1998, não tinha as referências nem a ação frenética do longa de 99, mas continha todos os conceitos que tornaram Matrix tão famoso. E ao criar uma atmosfera densa, com personagens diferentes e uma trama que impressiona pela complexidade, Dark City se mostrou um exemplar impecável do gênero, ainda que tenha cometido um suicídio comercial quando comparado a Matrix. Enquanto os Wachowskis descomplicavam seu mundo e estilizavam sua ação, Proyas não dava concessões ao espectador, o que é inegavelmente mais ousado.
Quando Kiefer Sutherland surge numa boa(ainda que desnecessária) narração em off, a atmosfera misteriosa já começa a dar as cartas. Com seu estranho figurino, o doutor Daniel Schraber, a primeira figura humana que o filme enfoca após o fade in no céu estrelado, olha angustiado pro seu relógio, já dando seus primeiros sinais de personalidade - o que representa bem a brilhante construção de personagens. O que se segue é uma das cenas de "morte" coletiva mais intrigantes que se presenciou no Cinema. Ao utilizar os competentes efeitos, com uma belíssima fotografia escurecida e a direção de arte impecável, a atmosfera criada nessa cena é inquietante e deixa o espectador perplexo de uma maneira incrível.
Essa atmosfera continua sendo construída com destreza por Proyas na primeira cena que mostra John Murdoch(Rufus Sewell). Dariusz Wolski constrói um ambiente esverdeado, baseado em sua fotografia essencialmente noir, para representar visualmente o problema de memória do protagonista. Esse clima se associa com a direção de arte, que busca uma influência fortemente expressionista, com seus tons amarelos opacos e suas construções exageradas. Não se restringindo apenas a uma época da humanidade, a direção de arte busca mesclar várias épocas de nossa história. Porém, a maior competência do filme é criar essa beleza técnica e encaixá-la na narrativa de maneira orgânica e funcional. Quando o quebra-cabeças começa a ser resolvido(e as explicações, sempre enigmáticas e eficientes, surgem), o esmero de Alex Proyas com seu visual e narrativa se explicita.
Emma, interpretada por Jennifer Connelly, tem como sua primeira cena cantando Sway, numa casa de shows. Essa primeira cena, aliada aos figurinos sempre sóbrios, já entregam a influência noir que o projeto tem. A presença das prostitutas e de crimes as envolvendo, de um departamento de polícia com um astuto detetive e a iluminação baixa na rua são vitais pro filme, naquela meia hora inicial, de absoluto mistério. A cada caso não resolvido, a cada assassinato, o círculo(uma recorrente figura no filme) vai se fechando. E o roteiro, escrito por Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer, é feliz em causar uma imersão absoluta na atmosfera do filme, com o espectador reconhecendo(e estranhando) aquele mundo junto do personagem de John Murdoch. E mesmo ao solucionar esse mistérios, o filme se mantém fiel á sua proposta ao conceder apenas as respostas que os personagens descobrem. Sendo assim, questões ficam elegantemente ambíguas ou sem resposta. Como, afinal, os humanos chegaram até ali? A cena da canoa já nasce clássica por debater de maneira honesta e emocionante esse desespero pelo conhecimento quando só há a falta dele. A tocante desolação pela busca sem resposta é o grande trunfo de Dark City.
O perfil noir da produção se aplica também, principalmente, ao seu protagonista. Se nos noir clássicos o detetive de valores corretos acabava se desvirtuando pelo seu envolvimento com a mulher fatal, nos noir contemporâneos o subtexto é mais conceitual e subjetivo que propriamente físico. Em Veludo Azul, não é o envolvimento de Jeff com Dorothy que torna o protagonista mais pervertido, são as experiências observando Frank Booth e Dorothy. Em Blade Runner, não é o envolvimento com Rachel que faz Deckard questionar seus valores morais, são os discursos filosóficos com Roy Batty. Em Cidade das Sombras, não é diferente. Temos o noir visual(nunca é ensolarado na Dark City), os personagens do gênero, as tramas de assassinato envolvendo mulheres fatais. Mas temos, principalmente, o subtexto moral, nesse caso filosófico. Blade Runner era um neo-noir futurista e Veludo Azul era um neo-noir surreal. Logo, Cidade das Sombras é um neo-noir de realidade simulada, baseada no Mito da Caverna de Platão(o que, "curiosamente", é utilizado em Matrix também).
Os conceitos científicos apresentados auxiliam mais ainda o primor sci-fi que é Cidade das Sombras. O implante de memórias são explorados ao máximo pelo filme, que cria variações e regras para o conceito, podendo desvirtuá-lo em nome de um bom clímax. O mesmo se aplica á telecinese, que é apresentada de maneira tão natural á narrativa que quando ela é explicada, entendemos o conceito sem estranhar. A primeira cena em que os efeitos especiais são utilizados pra representar a ideia de realidade que o filme tem são impressionantes por causar a mesma surpresa no espectador que a que se causa no protagonista da história.
O clímax, por sinal, representa bastante as qualidades técnicas do filme. A trilha de Trevor Jones, que no início era intrusiva e abusava das notas altas pra exagerar a tensão(numa bela homenagem ás trilhas de época, algo parecido com a trilha de A Caixa), agora aposta num ar mais techno, se parecendo bem com as composições de Marco Beltrami(destaque pra música nas cenas de delírio). A ação é registrada por Proyas da mesma maneira arrojada com que ele dirige as cenas calmas(repare na sensacional aproximação rápida de câmera que o egípcio realiza em seus personagens), com os efeitos especiais satisfatórios e surpreendentes de um orçamento minúsculo de 20 milhões. O destaque da direção de Proyas, porém, é sem dúvida o take em que ele se afasta da Dark City, revelando o que estava "por trás" dela.
O maravilhamento técnico, aliado(e incrivelmente eclipsado) a um excelente e desafiador roteiro, tornam Cidade das Sombras um dos filmes de ficção mais competentes, tanto emocionalmente quanto racionalmente, das últimas 3 décadas, assim como o recente Source Code. Com personagens inteligentes, situações misteriosas e questões filosóficas válidas e instigantes. Liberando no final as cenas de ação, que não prejudicam o filme em nada(levando em conta o caminho que o filme trilhou), Cidade das Sombras ainda é satisfatório por conseguir o que raramente se adquire em uma ambiciosa ficção-científica.
Responde as suas grandiloquentes perguntas de uma maneira igualmente intelectual.
***** 5 Estrelas
Nenhum comentário:
Postar um comentário