A trágica ou linda história de Pocahontas.
Encaixando como tema central de sua filmografia a Natureza como algo em perfeito equiílibrio, Terrence Malick sempre a usa como pano de fundo de suas obras. O subtexto carregado, presente desde Badlands, atingiu seu ápice em Cinzas no Paraíso. Trabalhando esse subtexto, o diretor se estabeleceu como um adepto da experiência metafísica e um amante da Natureza em seu estado mais selvagem. Quando analisada, a trama de O Novo Mundo é um fantástico palco para as teorias de Malick. Sua mensagem otimista, do Homem aprendendo com a Natureza, é forte o suficiente para elevar a básica história de Pocahontas. A universal trama, verídica, contava como dilema central o "homem branco" que se apaixona pela mocinha de outro povo. Essa trama, aliás, virou centro de diversos filmes, inspirando inclusive películas como Avatar. Porém, se o forte dos filmes de Malick não é o que está no primeiro plano de narrativa e sim na mensagem das imagens, em O Novo Mundo somos apresentados a uma nova postura do diretor quanto á narrativa.
Ainda que lenta, atmosférica, encantadora, a narrativa investe muito mais na trama e nos personagens que no subtexto que tanto tornou Malick diferenciado. Em Badlands, pouco importava a fuga do casal principal quando analisávamos a psicopatia de ambos. Em Cinzas no Paraíso, o triângulo amoroso não era nada perto do debate do equilíbrio entre Homem e Natureza. O mesmo vale para Além da Linha Vermelha, que explorava mais a psique do Homem perdido na hostilidade de seu caráter do que a Guerra propriamente dita. Já O Novo Mundo explora tanto a Natureza com suas belíssimas imagens quanto o seu desenvolvimento de trama. Isso poderia sinalizar uma clara evolução de Malick como contador de histórias e, em certa parte, representa exatamente isso. Porém, o diretor peca exatamente naquilo que sempre foi bom: No desenvolvimento da mensagem contida ali.
O início da película é Terrence Malick á moda antiga. A harmonia de Pocahontas com a Natureza é retratada da maneira mais solene possível. Os delicados gestos, o Sol batendo na câmera de uma maneira divina, a narração em off precisa. Começam então os bonitos créditos, com um imponente corte que inicia a belíssima sinfonia Das Rheingold. O contato com o Homem se apresenta logo depois desses créditos, com a chegada dos imponentes navios Ingleses. A sutileza conhecida de Malick é vista desde já: quando Colin Farrell aparece, já sabemos de sua situação como escravo pelo singelo take de suas mãos acorrentadas. Ali inclusive, naquele breve instante, John Smith pega a água caindo em sua cela, mesmo com as mãos atadas. Com uma sensibilidade emocionante, o diretor cria uma bela metáfora do Homem acorrentado a seu destino "civilizado" e que tenta absorver a Natureza mesmo preso.
Logo que chegam, os ingleses falam em "não ofender os nativos". Claramente, é a melhoria do Homem desde o psicopata Kit Carruthers em Badlands. O paradoxo, porém, permanece. A violência do Homem continua, ao mostrar seus confrontos com os indígenas e até mesmo a fala rápida dos meninos da Colônia, que contrasta com o constante silêncio das Aldeias dos nativos. E esse mesmo Homem que aprendeu a respeitar quem é superior a ele, é aquele que tem o objetivo de colonizar a Natureza. Essa entidade, que Malick respeita mais que tudo, tinha em Cinzas uma "personalidade" implacável. Quando em equilíbrio, ela abraçava o Homem sem reservas. Quando essa linha se partia, o preço pago era alto. Aqui em O Novo Mundo, a Natureza parece mais calma, mais reservada, mais endeusada e intocável. O acesso a ela é exclusivo dos indígenas, como nas cenas dos lindos rituais de espiritualidade dos nativos. Já com outros que tentam acessá-la, como John, ela tenta os afastar (como a brilhante cena do pássaro voando pra cima de John). Quando Pocahontas fala com sua Mãe, ela quer falar com cada árvore que toca, cada grão de terra que pisa. E é aí que entra o início do caso de amor de John Smith com Pocahontas.
A dualidade Homem/Natureza sempre foi subtexto para Malick, mas aqui se torna metaforicamente a trama em si. John se apaixona pela princesa indígena. Ela é a personificação da Natureza e o Homem, não por acaso chamado John Smith, é o amálgama de todos na Terra. Ainda que, como dito, a Natureza pouco faz de pesado para interferir na história, esse esquema era obviamente o que se esperava de uma obra do diretor. O desenvolvimento desse arco é fabuloso ao se virar para seus personagens e o amor entre eles. Justamente por se focar nesse romance que a narrativa soa tão diferente do resto dos filmes de Malick. E mesmo testando um campo mais didático (o que inclui narrações em off que até mesmo explicam a imagem em certos pontos), o diretor é bem sucedido ao criar lindos planos como um pelo meio da projeção, retratando o delicadíssimo e sutil amor entre John e Pocahontas.
O ritmo da produção, acompanhando essas sutilezas, é contemplativo e lento. No início da trama, a agilidade dá as cartas ao apresentar o arco principal, de John vivendo entre os indígenas. A fluidez da narrativa é tão grande que o espectador é surpreendido por Malick ao constatar que a história não deve seguir os rumos que se imaginava antes. E se a trama, um tanto arquetípica, já era extremamente bem desenvolvida até a virada brusca, quando toma novos contornos o filme apenas enriquece mais e mais estruturalmente.
E se a narrativa de Malick é evoluída, a técnica do diretor também evolui. O extraordinário dessa evolução é justamente constatar que Malick aprimora o seu já conhecido cuidado obsessivo com o visual. O Novo Mundo é, talvez, o filme mais lindo de Terrence Malick. Brilhantemente fotografado por Emmanuel Lubezki, as escolhas técnicas do filme são soberbas. Lembrando o Barry Lyndon de Kubrick, o filme investe pesado em luz natural. Lubezki cria uma película inteira em 65mm com essa intenção de edificar a Natureza e limitar o artificial. A cena da fogueira entre John e Pocahontas é belíssima. O tom vívido da luz contemplativa do fogo nos rostos apreensivos dos excelentes Colin Farrell e Q'orianka Kilcher é de tirar o fôlego. As batalhas, em certo ponto da projeção, são registradas no estilo inconfundível de Malick, o que mostra o competente trabalho de Lubezki e do diretor mesmo em sequências nas quais não estão habituados (Lubezki ainda não tinha feito Filhos da Esperança na época). A trilha de James Horner também contempla a beleza do filme de uma forma linda, marcante.
Essa batalha, que marca de certa forma o fim do primeiro ato, é pontuada por imagens em paz da Natureza. A mensagem é clara, ainda mais para quem viu o resto dos filmes do diretor.
Porém, nem tudo fica no controle de Malick. A narrativa mais elegante e coerente, com personagens carismáticos e admiravelmente tridimensionais, acaba cobrando seu preço. Ao justificar a dualidade do título do filme, Malick apresenta O Novo Mundo a Pocahontas. E aí o discurso, que antes já estava em menor grau, muda. O simples conto de John se apaixonando pela Natureza acaba gerando o complexo conto de Pocahontas se apaixonando pelo Homem. Não que houve uma mudança de postura na mensagem, mas que Malick abre uma nova vertente em seu pensamento, é inegável. Optando por complicar e enriquecer sua estrutura, o diretor acaba não concluindo sua história com John, o que geraria um belo fim de ciclo na sua filmografia, preparando o terreno para Tree of Life, a perfeita harmonia Homem/Natureza.
E seguindo Pocahontas, que se revela a verdadeira protagonista, o filme toma um novo rumo que é inegavelmente soberbo, mas descartavelmente arriscado. A tendência de Malick sempre foi mostrar o Homem se adequando á Natureza e em O Novo Mundo, o diretor resolve fechar sua filmografia adequando a Natureza ao Homem. O que era um processo gradual, cadenciado, se torna uma bola de neve. Se o Homem começa como inferior a Natureza, por que criar um equilíbrio entre as duas Forças ao subverter a mais forte delas?
Isso poderia ser visto como uma necessidade de ser fiel á História real, mas seria irrelevante e estreito pensar que Malick deixaria sua mensagem se diluir só pra seguir de forma documental uma obra de ficção. Logo, o mais provável é observar que Malick falhou ao desenvolver as virtudes do Homem, ao mostrá-lo como bondoso e altruísta depois de gastar uma hora e dez minutos de película ao mostrá-Lo como ganancioso e implacável. Porém, os "problemas" do filme são mais complexos. Malick mostra Cruzes e Igrejas durante toda a projeção, enfocando-as com os Homens. Ao endeusar o Metafísico presente na cultura nativa, as manifestações religiosas podem ser vistas como equivocadas aos olhos do diretor. Sendo assim, o final poderia ser, na verdade, a tragédia da Natureza perdendo para o Homem, da Pocahontas sendo domesticada.
Essa complexidade começa a ser esmiuçada ao analisar os takes finais. Pocahontas dançando naquele vasto campo, com um outro personagem, é a prova da felicidade da protagonista. Sua comunhão com a Mãe-Natureza no final, o banho na água, é a representação máxima de que a Princesa não es esqueceu de suas raízes. Portanto, houve o equilíbrio entre as duas Forças que tanto bateram de frente (com a Natureza sempre sendo mais poderosa, diga-se de passagem). E esse equilíbrio é representado pelos últimos takes, da Natureza selvagem em Paz absoluta, com o rio correndo normalmente e as árvores calmas e felizes.
Porém, a dúvida volta quando os detalhes da situação são analisados. O palco da conversa entre John e Pocahontas é um jardim enorme, mas totalmente "lapidado", domesticado. Estaria Malick feliz com o equilíbrio alcançado ou estaria triste com a queda da Natureza-Pocahontas para o Homem? A dualidade segue até o final e essa dúvida mantém-se na mente até depois da sessão. Não se engane, é lindíssimo ver Pocahontas manter sua essência natural mesmo em meio áquele mundo estranho dos homens brancos. Mas é igualmente trágico ver a transformação daquela divina criatura em equilíbrio, em algo que ela não é.
Por patinar levemente em sua mensagem, Malick cria uma obra imperfeita. Perigando terminar sem unidade, O Novo Mundo acaba se focando na narrativa e, por isso, dá uma volta inteira e se complica quando poderia traçar uma reta e ser bem sucedido. Ao valorizar mais o subtexto, Malick criou obras-primas. Aqui, ousou ao elaborar uma narrativa mais complexa. Mas com isso, criou um final que não soa ambíguo por respeitar a inteligência do espectador ou por depender da interpretação de cada um; soa ambíguo por não saber exatamente o que quer falar.
Como obra fechada, técnica e narrativa, fabuloso. Como uma parte da filmografia de um gênio e em sua mensagem, imperfeito.
**** 4 Estrelas
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