Andrew Niccol abraça o retrocesso em decepcionante sci-fi.
Quando Truman Burbank descobriu que sua vida era uma mentira, que aquele lindo horizonte era um papel de parede e que a Lua do céu era uma cúpula falsa, o desespero tomou conta de sua alma. Depois de bastante tempo vivendo naquele teatro de mentiras, o espectador sentia a mesma coisa que o protagonista. O cinismo da narração em off de Yuri Orlov, aquele traficante de armas que não se enganava com nada na vida, era válido pois naqueles tempos de Guerra Fria, a sensação de desesperança era maior que tudo. Em 1997, o lançamento da ficção científica Gattaca surpreendeu pela fidelidade com a realidade e pela narrativa envolvente, além de fornecer uma das melhores ambientações que se viu num filme recente do gênero.
Por isso, é tão decepcionante perceber que O Preço do Amanhã, novo filme do roteirista e diretor Andrew Niccol, vai de encontro á todos os fatores que faziam do australiano um dos mais surpreendentes diretores do Cinema recente. Mal desenvolvido, apressado, inocente e inverossímil (mas nunca modorrento), a nova sci-fi de Niccol é o maior fracasso do ano, já que almeja tanto com sua premissa espetacular.
Logo no início, Will Salas já começa falando em uma narração em off. O recurso, quando bem utilizado, é um fator muito bom para representar o que o protagonista pensa, a sua visão diante de uma situação. Curioso saber como Niccol, que abusou do recurso em Senhor das Armas ao retratar brilhantemente o que se passava na mente conturbada do protagonista, resulta tão primário aqui. Estabelecendo toda a ambientação do mundo em um travelling que sai do número no braço até mostrar o corpo de Will, o diretor cria sua realidade inteira em 30 segundos. Niccol nunca soou tão reducionista e preguiçoso. Após a cena inicial, o protagonista encontra sua mãe na cozinha e troca algumas informações nada gratuitas de seu mundo, falando sobre despesas a serem pagas e como sua mãe está fazendo aniversário de 50 anos, mesmo que ela esteja na pele de Olivia Wilde. Assim, rapidamente, nós somos fisgados para a realidade construída sem ter a mínima necessidade da didática narração inicial. É como se Niccol só tivesse escrito a cena da cozinha.
Essa preguiça em desenvolver as ideias criadas consome e implode O Preço do Amanhã da pior maneira possível: por culpa de ser criador. O exímio e paciente idealizador de mundos Niccol acaba soando abrupto em todos os segmentos. Provando estranhamente ser um autor desmedido, que mesmo tendo 6 anos desde seu último trabalho não consegue desenvolver uma ideia sequer com parcimônia, o diretor demonstra aqui uma perda do equilíbrio que confunde a mente do espectador que já o conhecia de seus filmes anteriores. Antes frio e constante tanto na criação quanto na utilização do mundo, Niccol aqui consegue destruir sua fantástica ideia conceitual, do dinheiro que foi substituído pelo tempo, para criar atalhos para um thriller de ação que se julga esperto. Cria bem, mas desenvolve dolorosamente mal.
Desenvolvimento, por sinal, é o que acaba com os personagens também. Um filme tão preocupado em estabelecer um paralelo com a situação do mundo atual não pode acreditar em absurdos; e deles, In Time tem aos montes. O proletário que nunca viu o mar sabe dirigir carros como ninguém, atira como um espião e prefere se divertir um pouco com seu dinheiro antes de "lutar contra o Sistema". A patricinha quasi-idealista nunca atirou, mas acerta na primeira vez. E como todo mundo é jovem, Niccol acha que todos são super-humanos. Em todos os momentos do filme, temos alguém correndo em 2 minutos o que qualquer um faria em 10. Em In Time, todo mundo é maratonista. E mesmo assim, alguns vão além, já que a Sylvia de Amanda Seyfried, de saltos 15 centímetros, se mostra uma corredora melhor que Olivia Wilde (num paralelo desnecessário que a trama faz). Bonnie e Clyde tinham um bando e viviam nos tranquilos anos 20. Logo, era mais fácil assaltar. Porém, na realidade alternativa do filme, não existe segurança, já que um humilde trabalhador e uma bem-vestida socialite roubam, sozinhos, bancos intransponíveis sem nunca passarem por um perigo real.
Se não bastasse as incongruências, In Time ainda tem uma séria tendência á inocência, que nada tem a ver com o tema cético proposto pelos conceitos trabalhados. O choque que o protagonista toma ao descobrir que - ó! Surpresa! - os ricos detém milhares de anos enquanto os pobres morrem sem Tempo. Qualquer um com um mínimo de senso geográfico poderia detectar isso, mesmo sem aparecer nenhum riquíssimo para dizer (como foi o caso de Will). Ainda assim, o filme insiste no idealismo exacerbado ao achar que uma dúzia de roubos irá adiantar alguma coisa para quebrar o poderoso sistema social do filme (esse qual, aliás, não temos noção da magnitude, já que Niccol se mostra péssimo em estabelecer seu cenário). Em certo ponto, o casal 20 percebe que o que está fazendo de nada adianta, já que os banqueiros estão aumentando os juros da população, o que equilibra a balança comercial novamente. Então, qual é a ideia para acabar de vez com o sistema? Roubar mais. Você já foi mais inventivo, Andrew Niccol. E menos preguiçoso e reducionista também.
Ao ver o trailer do filme, já é possível constatar que uma análise sobre o sistema econômico atual será feito. Aliando isso ao cinismo contagiante de Show de Truman e Senhor das Armas, era esperado um espetáculo do verossímil, um filme que não tem medo de aguçar um debate muito polêmico. Não é por acaso; o projeto tem suas melhores cenas justamente quando toca na ferida, quando analisa a política geo-econômica. Quando a população enfurecida ataca um Timekeeper, com questionamentos típicos de cidadãos que não aguentam mais, a emoção até se faz presente, mas ela é rapidamente diluída, seja num passeio bobo de carro ou num idiota treino de pontaria. O interessante é como um profissional desse gabarito consegue perder a oportunidade de realizar um filme global, esplêndido e panorâmico, e resolve ser apressado a ponto de dividir o mundo entre New Greenwich e Gueto. Sim, apesar de divididos em diversos distritos, o roteiro se restringe a reduzir o conglomerado mundial a dois meros lugares. Ainda que antagonais, transformar Ricos e Pobres em um micro-cosmo da situação política é tão inocente quanto estúpido.
Mesmo no excelente trailer, é possível perceber um erro que temos no filme. A prévia é embalada pela música Destiny, de Syntax. Destino, afinal, é o que mantém Will fadado á luta contra o sistema, já que o pai fazia o mesmo. Predestinado ou Escolhido, tanto faz; no cinema de Niccol, nunca houve espaço para arquétipos reducionistas e logo na melhor ideia que já teve, o diretor comete esse erro primário.
E quando constatamos que In Time, mesmo como filme politizado que adora ação, erra feio, é difícil apreciar e engolir o que está em tela. Buracos de roteiro se enfileram, mesmo numa narrativa tão trivial. O experiente Minuteman sabe que se atirar no alvo, ele vai perder o Tempo que contém nele, mas mesmo assim atira, pra depois se lamentar que o desperdiçou. Henry Hamilton se coloca numa ponte para morrer e cair, mas deixa Will no meio do fogo cruzado sem nem deixar algo que provasse a inocência do protagonista. No bar, Henry é avisado que não pode fazer uma transferência de dinheiro muito grande pois pode morrer bem no meio dela. Porém, na hora de transferir para Will, não acontece nada com ele.
O acaso dá as cartas em In Time e se faz presente justamente quando o roteiro se vê num beco sem saída. Se precisam fugir, pulem de uma janela, afinal deve haver uma regra que diz que policiais não pulam de janelas. Depois de surgirem abruptamente em New Greenwich, o casal protagonista conversa depois sobre quantas pessoas tiveram que subornar para entrar ali. Pra que didatizar, quando o mais válido sempre é mostrar? Comentar sobre o take final dá até tristeza, de tão infantil que o mesmo representa. Pelo visto, duas pessoas entrando num banco são realmente ameaçadoras. Existem pessoas com 10 mil anos em conta, mas na realidade de In Time, acabaram os seguranças.
Ao menos, Niccol tem um bom senso estético e sabe cercar-se de profissionais capacitados. Os ótimos figurinos concebidos por Colleen Atwood e a brilhante direção de arte de Alex McDowell só não são melhores que a excepcional fotografia do veterano mestre Roger Deakins. Um clima meio esverdeado, um tanto econômico, de retratar um futuro que soa bem plausível, ainda que alternativo. Até mesmo os carros setentistas se encaixam bem na trama, já que dão uma aura ameaçadora aos Timekeepers. Mas se Niccol está irreconhecível, Zach Staenberg também está. O brilhante montador do supra-citado Senhor das Armas faz um trabalho capenga aqui, ao acompanhar a afobação do filme e montar com desleixo cenas que precisavam de um cuidado maior, uma reflexão maior por parte dos personagens. E dali, sobram os cross-fades de meio segundo, que transitam as cenas da maneira mais feia e menos funcional possível.
Um clima estranho toca a narrativa de In Time. Uma atmosfera que cheira a pressa, como se o estúdio estivesse interferindo no controle criativo a cada 2 takes. Autor de um dos créditos iniciais mais interessantes do Cinema recente, Niccol aqui realiza um direção amadora, que se alterna entre os ângulos ridículos e a necessidade de cortar 3 vezes uma mera cena de beijo, compromete até as cenas de ação, que raramente empolgam, com destaque apenas para o bom plano-sequência em que Timberlake e Seyfried correm para fugir de noite (que por sua vez, é embalada pela previsível trilha de Craig Armstrong). Raramente vemos um momento espetacular em tela, mas quando ocorre, é marcante. É como se Niccol estivesse sufocado e ganhasse fôlego uma vez ou outra, como nas mãos em volta do doador de Tempo ou no final, na morte plausível de um Timekeeper.
Ao abusar de frases impactantes mesmo que não façam sentido no momento da narrativa ("Ele não deve estar correndo. Quem tem tantos anos não deve estar com pressa", afinal um fugitivo não deve fugir porque quer ser pego, então), o filme se perde diversas vezes em suas ideias e consegue realizar o pior filme já concebido de um conceito genial. Na saída do Cinema, meu irmão de 10 anos (que gostou do filme) descreveu o filme como "um Encontro Explosivo de ficção". Dizer que a descrição, apesar de simplória é ótima, é doloroso. Casal com armas, amor contra o sistema do mal, é isso aí!
In Time já nasce pedindo por uma refilmagem. O ruim é constatar que, analisando o currículo, o diretor ideal para conduzir o remake seria o mesmo do original.
Tem alguma coisa errada com Andrew Niccol.
** 2 Estrelas - Fraco
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