Indeciso romance dramático problematiza o esquema do gênero.
Dexter e Emma estão juntos em um quarto, em 1988. Felizes, ambos conversam de forma leve, tranquila, como se desfrutassem da personalidade de cada um, do coração de cada um. Falam sobre as ambições de vida, afinal acabaram de sair de suas formaturas. Ele, meio bêbado e despojado. Ela, retraída e desajeitada. Ambos se completam, querem ficar juntos, querem ir pra cama. Se ensaia uma relação, mas nada se concretiza. E quando vai acontecer, não acontece.
Por 20 anos.
Um Dia, novo filme de Lone Scherfig, o primeiro depois da aclamação do superestimado Educação, trabalha com essas idas e vindas típicas das comédias românticas, mas as adapta para os dramas da vida, tanto profissional quanto pessoal. Essa incursão, seja por desonestidade ou por ignorância, acaba tornando mais bonita a roupagem do romance, mas não torna as falhas menos visíveis.
Baseado no livro de sua própria autoria, o roteiro de David Nicholls apresenta seus personagens de forma eficiente, mas acaba se beneficiando de estereótipos para essa eficiência. Não estranhe se achar um tanto familiar o casal protagonista; Dexter é o mulherengo convicto que quer aproveitar a vida, Emma é a freak de laboratório com problemas de auto-estima. O trabalho dos coadjuvantes é minimizado, com razão. Num longa que demora vinte anos para se desenvolver, se focar no relacionamento é o mais prudente a se fazer. Porém, se a aproximação é válida, se aprofundar é perigoso. Na superfície, estereótipos podem ser assumidos (como em O Vencedor) ou satirizados (como na série Pânico). Os problemas começam quando o roteiro acredita no estereótipo que sequestrou. E Um Dia se sai pior do que o esperado justamente por acreditar e criticar, ao mesmo tempo, esse estereótipo.
Criticar, se entende, por quando o projeto toma de assalto a estrutura do romance e o encaixa na "vida real". Não estamos diante de exemplares leves como Nothing Hill e descompromissados como A Proposta. O drama sensível do filme o aproxima mais de exemplares como o fenômeno teen Um Amor para Recordar. Não se realiza uma crítica explícita a glamourização do romance, mas se entende. Principalmente pelo papel que a cultura da época faz no filme (o que debaterei á frente). E por contar uma história tão extensa, que perdura por duas décadas, o filme arruma um artifício para não se tornar enfadonho: contar um dia de cada um desses anos.
O que, em síntese, cria outro problema. Para um longa que demora um ano até caminhar para a próxima cena, Um Dia tem unidade demais. Nada parece ter acontecido nesse meio tempo; e o que aconteceu é contado de forma didática pelos personagens, fruto do engessamento promovido pela estratégia do "um dia por ano". Os encontros vão ocorrendo de forma natural, as vezes com uma distância enorme entre os personagens, mas pouca coisa muda. É sempre um Jim Sturgess, no terreno caricato que permeia sua limitação, sendo vítima da trasheira televisiva e da fama e uma Anne Hathaway triste e procurando fazer o que ama, mas sem sucesso.
E isso concretiza a ideia do estereótipo e nos apresenta a visão pouco amigável que o filme tem da própria época que se situa. Não é por mera proximidade com a época atual que o projeto se passa nos anos 90; Um Dia tenta justificar o fracasso de seus personagens devido ao tempo que vivem. Emma é inteligente demais para a cultura dispensável que se cria ali, Dexter é o produto que quer aproveitar a vida e perde o controle dela ao se aprofundar na ridicularidade do ambiente em que vive. É aquele tique de sempre das comédias pseudo-inteligente, fruto da geração Nick Hornby, de se referir a cultura pop a cada minuto para soar relevante. Em Um Dia, porém, o processo é inverso: a citação é pelo desapego á essa cultura, que pode ser tida como irrelevante para o filme. Pode até soar na verdade um amor a tudo que se fala, mas não se engane: é criticar o pano de fundo para tornar crível a tragédia retratada. Emma e Dexter são vítimas do tempo ali citado, o mesmo do romance idealizado e da televisão cheia de porcarias como programas de fofoca e de videogames. É injusto criar uma metáfora contra uma época que parece ter acolhido tão bem os diálogos do filme.
Mas não adianta. No fim, é a mesma história de sempre. Ao optar por fazer (ou tentar fazer) chorar, o filme denuncia a pretensão de querer ser bem mais inteligente do que é. Bicicletas, segundas chances e passeios na colina á parte, Um Dia é só uma comédia romântica que insiste no drama para fingir que não tem os três atos pertencentes ao gênero. Com direito á trilha bonitinha de Rachel Portman (que se sai bem na escolha das músicas da época, como a excelente Praise You) e tudo. O que difere as viradas idiotas de filmes como A Verdade Nua e Crua para o filme é o fato dos diversos anos que passam. Se Katherine Heigl fica chateada com seu amor por alguns dias para depois terminar com ele, Anne Hathaway demora uns dois anos ou três.
Scherfig, que parece demonstrar ser a mais elitista e moralista autora do movimento Dogma 95, consegue refletir boas escolhas técnicas á produção, como ângulos sempre bem compostos (ainda que através de uma decupagem clássica) e uma fotografia estonteante do sempre competente Benôit Delholmme. Ao ser um tanto sutil (mais que o roteiro) ao retratar Emma e Dexter como pessoas complementares ao colocá-los nos cantos opostos da tela, Scherfig torna evidente a competência estética que possui. Porém, ter um bom olho para composições (como o belo quadro aberto de Emma pulando na piscina) não basta. O moralismo já visto no desfecho covarde de Educação se exacerba aqui, ainda de forma não tão evidente. Dexter é um perdido na vida, que só consegue a redenção através de Emma. Por que criar uma reviravolta tão maniqueísta só para, paradoxalmente, soar realista? E não é apenas um mero defeito; se não fosse essa virada final, o projeto poderia até ser eficiente em sua superfície.
Há em Um Dia um longa dramático sobre a verossimilhança de um romance, um retrato coming of age para desmitifcar o esquemático jogo de romances idealizados. Mas há, também, um chantagista e arrogante filme que se julga inteligente e acima das culturas irrelevantes, mas que na verdade é só um caça-níquel procurando as lágrimas de mulheres desiludidas. E ao ter a audácia de forçar o espectador para trazer uma saudade e nostalgia do casal ao encaixar um dia distinto no início do relacionamento ao final da película só pra arrancar um choro a mais, se constata que o filme é quase tão maniqueísta quanto a mais vã comédia romântica. Muito bonitinho, claro. Muito mais racional nas situações (como o conflito da gravidez e com a mãe de Dexter), mas inocente em igual proporção no discurso.
O que Um Dia tem de mais evidente é a lastimável tentativa de acreditar naquilo que critica.
** 2 Estrelas
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