A apoteose filmada de um gênio.
Talvez um dos poucos heróis nacionais, Ayrton Senna é um mito. Além de ser um caso raro de herói, o piloto só é aumentado quando vemos sua vida pessoal. Diferente de cantores promíscuos ou drogados, Senna foi um exemplo dentro e fora de sua carreira, ajudando os outros da forma que pôde. Em tempos difíceis para o Brasil, fim de ditadura culminando para o violento movimento pró-diretas já, o brasileiro fazia mágica com o que tinha nas mãos e trazia um pouco de felicidade aos rostos cansados do povo nacional da época. Porém, o acervo de arquivo da Fórmula 1 e do próprio Senna sempre foi bem restrito, só sendo divulgado pra documentários menores, de revistas especializadas. Aliás, confesso rapidamente ser fã extremo do piloto, tendo visto esses documentários e acompanhado incansavelmente a carreira do gênio, mesmo ele tendo morrendo 1 ano antes de meu nascimento. E agora é muito bom constatar que uma equipe se reuniu pra liberar os tais vídeos de arquivo e fazer um documentário sobre a vida do mito. A equipe em si são os ingleses da Working Title, famosos pelas comédia-românticas aclamadas como Bridget Jones e Simplesmente Amor. Será que eles conseguiriam criar um produto á altura do que Senna foi?
O documentário segue toda a tragetória de Ayrton Senna nas grandes corridas, desde os espetaculares créditos iniciais em seu Mundial de Kart até a sua morte, em 1994. As imagens, capturadas em sua maioria pela FISA(emissora oficial da F1) e inéditas em tela, são organizadas em temporadas, a cada ano. Além disso, os depoimentos das pessoas sobre Senna, como Ron Dennis e Reginaldo Leme(ainda temos antológicas narrações de Galvão Bueno orginais), não quebram o ritmo das imagens e são apenas comentados em off, sendo que os entrevistados nunca aparecem em tela, o que dá um ar mais ficcional ao filme.
A decisão do filme de Asif Kapadia em retratar apenas os anos de Fórmula 1, com breves passagens do Mundial de Kart em 1978, é vitoriosa. Aquela máxima de humanizar a figura retratada, aqui é totalmente esquecida. Essa decisão ajuda a narrativa e o foco do documentário se torna, assim como no genial O Equilibrista, mitificar o indivíduo, editando o filme de uma forma que o público seja imparcial. Podendo ser vista pelos puristas como uma estratégia manipuladora e centralizada, essa decisão nem sempre é ruim, de fato que apenas reforça ainda mais a aura de gênio que trás o personagem. Quando a pessoa tem uma vida exemplar, essa imparcialidade é benéfica. Tanto que Phillipe Petit, Ayrton Senna ou Muhammed Ali não deixam de ser mais(ou menos gênios) só pela beatificação realizada em seus documentários.
Essa tal imparcialidade não existe apenas no campo documental. Quando estrategicamente posta para causar impacto, ela só ajuda a narrativa e a emoção, como por exemplo Menina de Ouro. A emoção da virada de personagem de Hilary Swank não seria a mesma se suas adversárias não fossem vilanizadas o filme inteiro. Mas se em O Equilibrista Phillipe Petit é visto como o gênio sem vilão, o único foco do filme, Senna é mais próximo de Quando Éramos Reis. Senna tinha seu próprio nêmesis, Alan Prost, mas sua luta era contra toda a política errônea e arrogante da Fórmula 1 na época. Assim como Ali, que lutou pelos negros, na terra dos negros, contra George Foreman, o vilão, o negro domesticado pela América. Conflito de ideologias se mistura com a apoteose filmada do piloto genial.
Humanização em filmes biográficos é normal. Em alguns casos, temos assombrosos retratos de figuras famosas(ou fatos famosos, no caso de Platoon) que impressionam e se tornam obras-primas, como os filmes de Oliver Stone(Nixon, The Doors, W. e até mesmo seu recente doc. sobre Hugo Chávez). Porém, o jogo de cena(ou ficcionalização dela, como no supra-citado O Equilibrista), é mais um retrato apaixonado do diretor sobre o indíviduo em questão do que próprio maniqueísmo. Esse jogo, ainda que torne o documentário mais próximo da ficção(e consequentemente do cinema), é válido em certos pontos. Mesmo que Senna não precise de nenhuma edição esperta pra tornar sua vida mais exemplar, a escolha do diretor em usar o jogo é interessante e torna a experiência mais cinematográfica e bonita, até mesmo provando que é desnecessária uma dramatização da vida do piloto. Então estaria o diretor criando um conto de fadas sobre um santo? De jeito nenhum. Asif Kapadia vê a tragédia a cerca da morte de Senna com tanto pesar que demonstra explicitamente que não é necessária nenhuma humanização exacerbada do herói. Existe humanização maior que a morte do piloto durante uma corrida? Em certo ponto, Prost fala que Senna acha que não pode morrer. Naquela fatídica curva Tamburello, o documentário humanizou Senna da forma que precisava.
A direção de Asif Kapadia é genial. Mesmo sendo um documentário, o diretor não tendo nenhuma liberdade e não podendo filmar nada, Kapadia organiza suas peças de forma espetacular e tira emoção de cada cena que pode. Depoimentos emocionados do povo brasileiro, chegando a citar que Senna é o unico motivo de alegria do país, são de uma sensibilidade cênica do diretor que chega a deslumbrar pelo simples fato de ser uma maravilha de película. A direção ainda se torna maior se formos ver a equipe responsável. A edição é de tirar o fôlego, sendo essencial pra tal mitificação do herói nacional. Passagens se tornam antológicas com a ágil edição, como a tensão recorrente entre Senna e Prost, as corridas finais dos campeonatos e as partes mais emotivas, como o enterro do herói, mesclado de forma linda com imagens do piloto vivo com seus amigos. Pra melhorar, a trilha sonora de Antonio Pinto é de um repertório magnífico, mesmo relembrando algumas notas de seu trabalho em O Senhor das Armas. Seu violino agressivo, misturado com notas tristes orquetradas no background, dão o tom exato a todo o documentário, que é bem sucedido musicalmente nas partes felizes e mais ainda nas tristes.
Entrando no panteão dos grandes documentários, Senna é um motivo de orgulho pro povo brasileiro. Mesmo sendo uma equipe estrangeira retratando um herói nacional em tela, é de verter lágrimas dos olhos o fato dessa equipe ter se demonstrado apaixonada pela figura exemplar de Ayrton. Um legítimo herói, um ícone, um mito, um gênio. E agora, uma lenda. Mesmo que os Cazuzas insistam em provar que os meus herói morreram de overdose, é um alento ao coração ver um sujeito que ajuda os outros como pode, auxilia as crianças, faz seu trabalho de forma genial e ainda é crente em uma força superior com fé contagiante. Senna é o maior herói do meio cultural da história brasileira e, sem dúvida, o profissional mais hábil e competente dos automotivos. O melhor que já existiu. E para isso, não é necessário mais que 3 títulos, 41 vitórias, 65 poles e 19 voltas mais rápidas. Quem agraciou Senna entende, perfeitamente, que quantidade não é qualidade. Na sua breve passagem pela vida, Senna já deixou saudades. Em seus efêmeros 10 anos de Fórmula 1, meu ídolo pessoal fez mais que qualquer Schumacher ou Piquet poderia fazer em 100.
***** 5 Estrelas - Nota 9,5
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