Darren Aronofsky cria, num mix de seus trabalhos, a perfeição.
Uma bailarina vestida de branco começa a se movimentar num palco escuro. Ela não pode ser identificada inicialmente, apesar da iluminação contemplá-la quase divinamente. Então, a paixão da personagem, a dança, é filmada através de seus pés, com movimentos milimétricos, sem um completo erro. Logo, surge um segundo participante, um estranho ser vestido de preto, que dança de forma sincronizada com a bailarina. Porém, a coreografia é diferente. Ela é complicada e imprevisível, espetacular e plástica ao extremo, mas o tal ser parceiro da bailarina se transforma num cisne com cifres. Mas o mais estranho é a naturalidade com que a bailarina encara o parceiro transformado. Era até mesmo desnecessário que a bailarina comentasse depois que a tal coreografia era diferente das que foram ensaiadas. Os ensaios demonstram depois que os erros fazem parte do show. E naquela estranheza escura, dividida pelos dois participantes, a perfeição foi alcançada. Então, Nina Sayers acorda. O sonho não é o bastante. Ela quer a perfeição real.
Sem ao menos precisar saber do que se trata a película, Darren Aronofsky nos entrega tudo o que a personagem quer, de forma objetiva e inovadora, em dois minutos. E isso é apenas o primeiro elemento do êxtase de emoções que é Cisne Negro.
Desenvolvimento, aliás, é algo facilmente conduzido pelo diretor. Desde seu debute na direção, o alucinado Pi, o cineasta trabalha com isso. Porém, é normal dizer que um desenvolvimento lento é genial e todo o tempo do mundo deve ser gasto para desenvolver os personagens e situações. Em várias películas, como na obra de arte 2001, é exatamente assim e isso é digno de aplausos, sim. Mas é preciso ser um profundo conhecedor da sétima arte para dizer o que um personagem é e o que sua história pretende contar em apenas poucos minutos. Assim como o sonho inicial, fundamental para a ambientação com Nina, tudo em Cisne Negro é conciso e bem desenvolvido. Paradoxo, diriam os críticos adeptos do desenvolvimento lento. Mas aqui, é notável a capacidade que o roteiro de Mark Heyman, Andrés Heinz e John McLaughlin e a direção de Aronofsky de serem diretos, sem nunca soarem apressados. Não só o sonho de Nina é exemplo disso, como também seu arranhão nas costas ser apresentado rapidamente a trama. Essa concisão é recorrente a Aronofsky. O início de sua obra-prima, Requiem para um Sonho, já começa com uma discussão simples, mas que determina todo o ritmo aterrador da narrativa.
E se Nina não estranha o visual diabólico/bizarro que seu parceiro tem, é fácil constatar que estamos no seu subconsciente. E dele não saímos em nenhum momento do roteiro de Heyman, Heinz e McLaughlin, que não faz concessões a respostas fáceis e nunca entrega ao público soluções triviais para as complexas relações emocionais retratadas por Nina e os coadjuvantes. Dando apenas sinais da possível falta de realidade na qual Nina está, como sombras e a aparente falta de comunicação entre a bailarina e uma outra pessoa, Cisne Negro é repleto de simbolismos. Nina tem sua paixão ao balé retratada dessa mesma forma. Se diálogos e situações são desnecessários nessa concisão que os realizadores impuseram, nada melhor que usar vários elementos de cena para determinar o jeito de sua protagonista. Os simbolismos aqui servem não só como meras sacadas visuais, mas como determinantes chave para a compreensão da personagem. Sabemos que Nina é infantilizada por seus bichos de pelúcia no quarto. Entendemos a importância de uma tora de madeira apenas quando uma briga ocorre. Nada está ali por acaso ou de forma desnecessária.
Os simbolismos, aliás, são expandidos e aprimorados pelo gênio contemporâneo que é Darren Aronofsky. Se esses mesmos são recorrentes na carreira do diretor, que implodiu Fonte da Vida perante o público justamente por abusar dos simbolismos que afastam quem procura respostas fáceis numa narrativa, aqui ele insiste neles sem medo da reação, respondendo visualmente questões que o roteiro deixa em aberto, o que é uma demonstração legítima de coragem. Mesmo depois de ter seu segundo melhor filme, o belíssimo poema de amor e vida que é Fonte, massacrado pelo público, ele continua a fazer cinema de arte.
A complexidade de emoções é potencializada com a chegada de um inspetor, um mediador que determina a perfeição, que tanto Nina procura. Thomas Leroy, vivido com uma surpreendente presença de cena do excelente Vincent Cassel, é peça fundamental pro quebra-cabeça que Nina pretende construir. Seu professor de balé, extremamente rígido, impõe uma rotina de treinamentos que Nina não consegue balancear. Mesmo sendo totalmente dedicada, Thomas sempre está exigindo que a bailarina saiba interpretar o Cisne Negro, o extremo oposto do Cisne Branco, no qual Nina é perfeita. E é nesse momento que a bailarina começa a ter dúvidas de sua sanidade, quando entra nesse vácuo mental que pode destruí-la.
E é nisso que Aronofsky volta aos simbolismos. Se Nina é perfeita, porque então Thomas não a aceita? A resposta é implícita e apenas ANALISANDO o comportamento do professor, atentando ao seu olhar clínico e cheio de respostas, reproduzido pela complexa interpretação de Cassel. E essa análise não é jogada na tela á toa. Aos que não desvendarem a resposta, ficará um buraco. Os roteiristas e o diretor arriscam a compreensão de seu filme em nome da confiança no espectador. Não há uma representação mais apaixonada do que essa de um cineasta ao seu público, respeitando completamente sua inteligência. Tanto emocionalmente como fisicamente(existem cenas que ecoam o lado mais sombrio de David Cronenberg, como a retirada da unha), Cisne Negro não é uma experiência para fracos.
Essa dualidade presente durante todo o filme, em que estamos claramente dentro da mente de Nina(com exceção de raros contra-planos, como no clímax, em que Aronofsky nos tira, sem avisar, desse estado), é personificada por um personagem: Lily, interpretada com competência impressionante de Mila Kunis. A atriz, que merece todos os prêmios a que poderia ser indicada, demonstra com uma naturalidade espantosa toda a cerne de Lily. A perfeita candidata a Cisne Negro, ela exibe uma sensualidade e imperfeição em seus movimentos que atraem Thomas. E sendo a preferida do mediador para o papel de Odile, Lily é o que Nina queria ser: O lado obscuro da perfeição. Quando Nina tenta ser como Lily, é doída a cena que ela vai falar com Thomas em busca do papel de Swan Queen. Com seu jeito tímido e contido, com uma doçura incomensurável, Nina tenta representar a sensualidade de Odile do jeito que sabe. O simbolismo? Um desajeitado batom rosa. A simples cena determina o insucesso de Nina em ser adulta. Aí se abre o tal vácuo mental que pode destruir cada pedaço da pobre bailarina, vítima de suas altíssimas ambições.
E de onde vêm essas ambições? Há um núcleo específico pra isso, o que explora a mãe de Nina, Erica, interpretada por Barbara Hershey. Como a personagem de Cecília Roth em Ninho Vazio, Erica é complexa por não aparentar o que sente realmente de forma explícita. E Barbara Hershey, em atuação poderosa, transmite toda a incerteza de Erica. Os pequenos símbolos que a representam, como o genial coque preso no cabelo, fazem metade da construção da personagem, que tem uma rigidez ácida com Nina, talvez por alguma frustração passada que tenha a atingido. E o coque é a resposta crua que os realizadores nos dão.
Observando o núcleo dramático pesado que nos é apresentado, vemos que o filme percorre o caminho do filme-delírio, como em Pi. Mas Cisne Negro é uma evolução nítida em Aronofsky como contador de histórias, em relação ao debute, já que o mesmo explorava bem menos a dramaticidade extrema que Cisne tem. E essa dramaticidade é uma verdadeira carrasca de Nina, que está no papel que foi de Sara Goldfarb, em Requiem. Com a melhor atuação do ano, Natalie Portman capta toda a essência de Nina Sayers e entrega a interpretação mais fabulosa de sua carreira.
Não se deve subestimar a parte técnica do filme perante a narrativa. A fotografia de Matthew Libatique é granulada e lindíssima, dando um ar de realismo mesclado com onírico, nunca trocando os tons, fazendo com que nunca se saiba quando Nina está realmente sonhando. A trilha sonora do igualmente genial Clint Mansell pega trechos do balé de Tchaikovsky e utiliza uma orquestra á moda antiga, com instrumentos dificilmente utilizados como tambor e trompete. Fora isso, utiliza o seu habitual violino com uma beleza de tirar o fôlego. Aliados á trilha sonora angustiante, a mixagem e edição de som são igualmente bem-sucedidos ao implantar elementos que emulam ruídos na cabeça de Nina, o que é aterrador e apavorante em diversas cenas. A edição de Andrew Weisburn é precisa e, apesar da competência, é o quesito mais apagado do filme.
E se Darren Aronofsky evolui a cada segundo como contador de histórias, sua direção é de um apuro estético de fazer inveja a veteranos. Seus cortes rápidos de hip-hop montage, presentes em Pi e Requiem, são substituídos pelos planos-sequência gigantes de Cisne Negro, como a cena em que Nina dança como Odile, o que merecia uma resenha á parte. Momentos de pura genialidade, como a dança de Natalie Portman representada pelo espelho atrás de Vincent Cassel, são recorrentes e têm pelo menos mais 3 exemplos a serem citados: O clímax, a cena no metrô e a cena do hospital, perto do final.
Um espetáculo da sétima arte, Cisne Negro é ambicioso como qualquer filme de Aronofsky e entrega uma qualidade quase igualável aos dois melhores filmes do diretor. Com a marca do realizador em abordar diversos temas em apenas uma trama, Cisne é uma fábula contemporânea sobre a perda da inocência, a perda da castidade do Cisne Branco(como o espetacular plano que o diretor acompanha Natalie caminhando quase num êxtase sexual), o amadurecimento e a metalinguagem com o Lago dos Cisnes e a própria indústria cinematográfica(como a transformação física de Natalie e Mila denunciam). Uma experiência como poucas. Um monstro de cinematografia. Um retrato cru e melancólico da obsessão de um artista por sua paixão. A derrocada do ser humano é, mais uma vez, retratada por Darren Aronofsky. E com mais um filme que merece figurar no Panteão nos filmes mais importantes da história.
***** 5 Estrelas - Obra-Prima
Belo texto.
ResponderExcluirConcordo com ele.
E vi todos os filmes do diretor. Em "Cisne Negro" parece que ele conseguiu encaixar seu estilo, criar seu padrão de cinema, realmente coeso. Em "O lutador", algumas coisas ficaram meio soltas ainda. Tem hora que parece filme de outro diretor. Ele tá se reinventando para melhor. As coisas obscuras e pesadas que ele põe nos filmes, tem soado bem mais maduras mesmo.
Já comentei né, que quando tava assistindo Cisne Negro, em alguns momentos parecia que eu tava vendo um filme do Kubrick. Achei o clima parecido com Eyes Wide Shut. Enfim, Cisne é um filme que dá prazer em ver.